quarta-feira, 8 de abril de 2015

Dorival Leitão e a Morte da Arte



Morreu sem a identidade. Alexander Amadeus Fausto Picasso. O nome de batismo fora esquecido pelo próprio no alto (antes de cair) dos seus quase 100 anos. “O sofrimento foi mitigado”, diziam parentes e amigos vindos de todos os cantos do globo. Alegavam querer matar a saudade do velho artista antes de sua despedida definitiva para o mundo do além, ou só debaixo da terra mesmo.
Mas o que chamou realmente a atenção foi um bilhetinho, letras muito bem desenhadas, papel de pão no bolso de seu velho e desbotado casaco preto. “A arte está morta”. Palavras simples, mas que repercutiram com profundidade nos dias seguintes ao seu falecimento. De seu apartamento de três andares, acesso restrito a convidados exclusivos, perto do Catete, onde suas famosas obras de todos os tipos foram produzidas antes de girar por este mundo, o burburinho tomou dimensões épicas. Isso ofuscou ainda mais o pequeno revólver de prata colocado em sua mão direita. “Assassinato ou suicídio?”, poucos se importavam com esse detalhe. Todos queriam saber mesmo o que era essa tal morte da arte.
Para a ocasião não haveria repórter mais experiente para preparar uma pauta à altura, das mais criativas, do que o Seu Dorival Leitão, o septuagenário cronista notável de seu tempo, direto do “Manchetes Diárias do Tiros no Rio”.
Elaborou sua estratégia. A missão começou. Precisava ouvir alguns artistas de gabarito, cada um notável em seu seguimento para falar do tal assassinato. Da arte, para reforçar.

1-    O PINTOR
Cheguei ao ateliê de Pierre S. Melô. Um retângulo vermelho no meio da Mata Atlântica. Repousei o desgastado chapéu marrom e a nova bengala ao lado de um quadro negro. Estava cheio de rabiscos, parecendo sala de escola pública. O ambiente era muito espaçoso, com quadros pra todo lado e mais folhas ainda, espalhadas. Pingos de tinta em sua roupa e uns óculos que mal deixavam à mostra os famosos olhos grandes de Seu Pierre.
_ Olá, Seu Pierre! Lembra-se de mim?
_ Não.
_ Estive entrevistando o senhor uma vez. Quando teve uma modelo assassinada aqui no seu ateliê. Foi o senhor?
_ Não.
_ Conheceu Alexander Amadeus Fausto Picasso, o artista morto esta semana?
_ Não.
_ Mas todos o conheciam! Ele deixou um bilhete. Falando que a arte está morta... O senhor acredita?
_ Não.
_ Por que não? O que a arte é pra você?
_ Nada.
_ Nada?
_ Nada e tudo. Arte é nada.
_ Você sempre foi um artista?
_ É um dom dos deuses. Pouco como eu o têm.
_ Sim...
_ Não.
_ O que é que está pintando nessa tela aí?
_ É o nada.
_ Pois é. Isso eu vejo. Não estou entendendo nada. Ou seria qualquer coisa?
_ Obrigado.
_ Não há de quê.
_ Com licença. Preciso pintar a vida.
_ E a morte?
_ É o nada.
E eu saí de lá sem saber qualquer coisa sobre a morte da arte. Precisava de uma segunda opinião.

2-    A ATRIZ
Em seguida, um pouco mais esperançoso, um tanto otimista pra falar a verdade, fui ao encontro de Mariângela Zulu, conhecida como a “diva dos palcos”. Volta e meia também dava as caras na televisão. Ela sempre declarava que desejava o que lhe desse mais prazer artístico. Era isso que eu precisava mesmo. Sentada em seu camarim, com um creme verde na cara e trocando olhares consigo mesmo no espelho gigante que ia até o teto, fui recebido desse jeito. A tal da diva fazia um sinal com a mão pra mostrar que estava com pressa.
            _ Como você enxerga a arte, Miss Mariângela?
            _ Por que “miss”?
            _ Achava que gostasse de um título.
            _ Sou atriz. Estudei pra isso.
            _ Não foi isso que eu perguntei...
            _ Então, faça logo! O que quer?
_ Nem diga isso, senhora. As coisas na minha idade não têm muito jeito mesmo.
_ Senhora?
_ Sim. É o que você é, não?
_ Você?
_ Sua pessoa.
_ Prefiro assim. Pessoa, persona, máscara. A arte de atuar...
_ Arte, pra sua pessoa, o que é?
_ Um talento, a representação, o poder do olhar, da voz, os movimentos de meu corpo. Não há algo maior do que o teatro.
_ E a televisão?
_ Deus me livre! Só faço aqui quando o dinheiro compensa. Chega aqui... Cá pra nós, alguém com cérebro vê aquilo?
_ Eu vejo.
_ Inteligência é um conceito muito subjetivo.
_ E a arte?
_ Arte o quê?
_ A arte de Alexander Amadeus Fausto Picasso.
_ Como ele está?
_ Está morto.
_ Sério? Quantos anos ele tinha? 200?
_ Ele disse que a arte está morta.
_ Só se for a dele. A minha é imortal. Sobrevive comigo.
Levantou-se com o olhar arrogante, que me encarou pela primeira vez. Fechou-se em uma porta. Esperei por muitos minutos, mas ela não voltou. Devia estar repousando sua arte.

3-    O ESCRITOR
Trabalhando em seu novo livro – uma biografia não-autorizada de si mesmo – Emílio Homem Jesus Maria Cacá – foi outro que me deixou visitá-lo. Sentado debaixo de mangueira na chácara, o banco era feito de uma porção de livros de capa dura e folhas amareladas.
_ Pois não, senhor?
_ Sim, sou eu. O repórter Dorival Leitão.
_ Não! Eu estava lendo em voz alta a fala de meu personagem.
_ Certo... Seu Emílio?
_ Como você anda, meu caro?
_ Eu ou o seu personagem?
_ Você, meu caro! Não faça perder minha paciência, Seu Leitão!
_ Estou muito bem. E...
_ Era a cena em que eu acabei brigando com meu professor do internato. Eu entendia mais de literatura do que ele. Um tirano velho!
_ Sim. E...
_ Desgraçado!
_ O que eu...?
_ Aquele filho da puta me expulsou do colégio!
_ Não diga?!
_ Não mesmo! Levei uma cintadas terríveis de papai. Tenho marcas até hoje na minha barriga.
_ Mas não dizem que a dor inspira a arte?
_ Arte, arte, arte... O que é essa maldita arte?
_ Essa era a minha pergunta para o senhor...
_ Artistas são umas criaturas de merda! Excrementos supervalorizados. Qualquer lixo hoje vira arte.
_ E seu novo livro?
_ O quê? Estás a insinuar que meu novo livro serás um lixo?
_ Certamente que não, Seu Emílio. Mas por que falou com sotaque português na última fala?
_ Não sei. Não interessa! Foram sujeitinhos como você que acabaram com meu último livro. “50 Anos de Sono”... Era tudo que se podia esperar: tinha drama, ficção científica, suspense, crise existencial, sexo, muitas fotos coloridas... Vocês, jornalistas medíocres, sempre acabam com a nossa graça!
_ Mas eu nem li seu livro!
_ Esse é o problema. Vocês não sabem nada do que a gente faz e fingem que viram tudo. Sinto falta dos velhos tempos. Quando não havia essa porcaria de internet. E essa gentalha pegava um livro pra ler em vez de ficar bisbilhotando a vida dos outros. O mundo era mais certo. Era melhor. Bons tempos...
Eu saí, mas o senhor ali continuava a divagar para a árvore, pobre solitária que não podia se mover. Fiquei sabendo que ele foi internado num manicômio alguns dias depois enquanto papeava com um poste. Coitado, incompreendido. Um tal de complexo de perseguição. Quanto a mim, nada ainda da morte de arte.

4-    A CANTORA
Indiferente à fila de fãs histéricos, em pé em um imenso palco, diante de uma plateia vazia. Arlete Azaleia ensaiava olhando para o teto ou para o chão. Sua voz ia da mais fina ao mais grave que se podia imaginar e eu chegava a me assustar. Meu Deus! Aquilo era arte! Ali encontraria minha resposta, imaginei. Pareciam duas pessoas brigando ali dentro pelo mesmo corpo magro da moça. Era conhecida como a “dona da voz”. Pra mim, era a esperança pra elucidar o mistério.
_ Olá.
_ Pois não?
_ Sou Dorival Leitão.
_ Sim, sim... É aquele... O repórter das notícias sangrentas.
_ Ele mesmo. A seu dispor.
_ Dorival. Parece nome de remédio. Quem deu?
_ Deu o quê?
_ Esse nome de remédio, senhor!
_ Inventaram na minha terra. Coisa de Resende.
_ Resende... Já tomei um remédio com um nome parecido.
_ Era pra voz?
_ Não. Para os nervos mesmo. Sempre fico muito agitada quando vou me apresentar.
_ Mesmo tendo uma voz dessas?
_ Que tem minha voz?
_ É maravilhosa! Parecem duas criaturas numa só pessoa.
_ 2 em 1... Adoro promoções quando vou à farmácia. Deixo minhas prateleiras cheias pra não correr o risco de ficar em falta. Mas ninguém nunca me disse uma coisa dessas sobre minha voz.
_ Pois parece sim. Te garanto!
_ Pegue aquela caixa de remédios ali pra mim, Senhor Dorival. E a garrafa de água também. É egípcia. Faz milagres com as cordas vocais.
_ Já foi ao Nilo?
_ Não, não... Mando trazer. Você já tomou esse comprimido?
_ Que é?
_ Molevotril. Para os nervos. Dá uma animada dos diabos.
_ Hum... Meus remédios são pra aquelas coisas normais de velho mesmo. Nada de diferente. Puxei a saúde de ferro da família.
_ Eu tomo todos que puder. Fico apavorada com doenças.
_ Certo... Que tal falarmos sobre a arte, senhorita Arlete?
_ Minha voz é a arte. Quer mais?
_ Alexander Amadeus Fausto Picasso está morto.
_ Quem? Ah, sim... Aquele. Acho que nunca o vi em um de meus shows.
_ Ele morreu dizendo que a arte está morta.
_ No Brasil? É claro que sim. Ou melhor, em qualquer lugar. Ninguém canta mais. No Brasil só restam duas: Ângela Maria e eu. Eu e Ângela Maria. A terceira já está morta faz anos.
_ Sua voz faz discursos como um anjo.
_ Mimimimimimimimimimimimi... aaaaaaaaaaaaaa... eeeeeeeeeeeeeeeeee... iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Com licença, é só o aquecimento, Senhor Dorival, de Resende.
_ Sim. Sempre quente. Esse aquecimento global está acabando com tudo.
_ Pode fechar a porta quando a sair. Tem uma fresta deixando as correntes de ar entrarem. Isso acaba com minha voz.
A “dona da voz” voltou ao ensaio e nada mais falou. Arte, arte, arte. E o corpo do Seu Alexander Amadeus Fausto Picasso foi enterrado numa cerimônia cheia de gente com roupas esquisitas e músicas que não faziam sentido algum. Devia ser por isso que ele escreveu o bilhete. O papel de pão foi colocado na lápide. “A arte está morta”. Que arte é essa até hoje eu não sei.


(Leia mais histórias do grande repórter Dorival Leitão aqui e aqui...)