terça-feira, 6 de novembro de 2012

Rosas desconexas

Segunda Guerra Mundial, uma mulher forte, seu filho, as rosas, um visitante. Algumas ideias vão desabrochando..


"Aquelas rosas amarelas eram as mesmas. Sempre que a primeira desabrochava, o menino Alberto as colhia para a sua mãe. Corria de manhã, logo cedo, em direção ao lago da fazenda, onde estava a roseira solitária, e pegava com o maior cuidado para não deixar cair uma única pétala. Quando não alcançava seu objeto de desejo, pedia para o jardineiro, um velho sábio de sangue indígena, para que o erguesse e assim executasse sua missão. 
Volta e meia, num pequeno descuido, espetava-se. Mas não deixava que isso o esmorecesse. Gostaria de entrar correndo na sala do casarão e exibir orgulhoso o presente para a mãe. Assim fora durante tantos anos, na inocência, até a partida daquele, já um jovem crescido, para os estudos na capital. Mal sabiam, mas a relação deles, após essa mudança, jamais seria a mesma. Não haveria mais a inocência."

sábado, 25 de agosto de 2012

Quanto nós valemos?





Enquanto zapeava na manhã de ontem, acabei parando em um canal que exibia algo chamado ‘Boy Interrupted’. O título não me chamou atenção a princípio, mas quando vi a sinopse, não consegui mais tirar os olhos. Era um documentário que falava da vida de Evan Perry, um adolescente nova-iorquino que se matou em 2005. 
A obra foi produzida pelos pais do garoto e mostrava imagens e vídeos do jovem, acompanhados por muitos depoimentos de seus familiares e amigos. Um tanto duro de assistir, mas me fazendo o tempo todo imaginar como deve ter sido uma vida difícil de viver e de lidar. Um jovem que, desde pequeno, já aparentava transtornos de personalidade, tinha pensamentos adolescentes demais para uma criança e uma fixação excessiva pela morte (presente em suas falas, canções e textos de ficção). Ele foi diagnosticado com transtorno bipolar, recebeu todo tipo de atendimento e medicação, mas acabou sucumbindo ao que já fora previsto em sua curta trajetória.
Ao final da mesma manhã, abrindo um site de notícias, vi em destaque a condenação a 21 anos de prisão do atirador da Noruega, Anders Breivik. Responsável pelo assustador número de 77 assassinatos numa ilha ano passado, ele recebeu a sentença com um sorriso. Monstro, psicopata, demônio... Algumas dessas palavras são as que logo nos ocorrem quando nos deparamos com esse tipo de crime. Ao ler sobre suas motivações, me lembrei de um certo sujeito que era dono de uma aversão tão grande e, defendendo a chamada ‘raça pura’, conseguiu comandar a Alemanha no século passado. É estranho para nós brasileiros, um povo miscigenado, mas estrangeiros numa terra originalmente de brancos ainda ‘conseguem’ levar uma pessoa a cometer barbáries.
Não tenho nenhuma pretensão de tentar entender as causas ou buscar culpados em casos assim, mas o que consigo perceber em comum são formas bem distintas de raiva em cada um deles. Uma é aquela que foi internalizada e usada contra si próprio ao não se conformar com uma vida enxergada como infeliz, um sofrimento vindo de não se sabe onde – aquele mal chamado depressão. A outra forma me parece aquela de uma mente condicionada rigidamente a não aceitar as diferenças, de se prender somente as suas crenças limitadas e ver em outros simples seres humanos uma ameaça em potencial ao seu estilo tradicional de vida.
Os dois casos que citei estão ligados pelo tênue fio da morte, aquela única certeza que todos temos que vai acontecer um dia. E basta vermos os noticiários que sempre acabamos por encontrar diariamente os traços de semelhança com aqueles ocorridos. Parece que nós já nos acostumamos, por exemplo, que judeus e muçulmanos entram em atrito todo dia e que algo sempre vai explodir no Oriente Médio.  Assim como quando ouvimos a notícia de alguém que se matou e somos remetidos frequentemente à figura do louco ou do cara que perdeu tudo e não quis mais viver.
Será que a desesperança causada por essas tragédias afeta e influencia diretamente tanto a pessoa que já sente o valor de sua vida diminuído quanto aquela que acha que vale mais que as outras? Olhando ao redor, estamos, grande parte, envoltos numa rotina que se parece cada vez mais com uma corrida. São tantos pensamentos mergulhados em trabalho, dinheiro, sons, máquinas, tempo, frieza, consumo... Quem vence? O que é vencer? O que vai acontecer se eu não vencer?
Em meio a isso, vejo surgir uma simples questão: qual o valor da vida de todos nós?

sábado, 11 de agosto de 2012

Tempestade de interesses




O bem comum é sempre mostrado nas propagandas políticas no Brasil e nos regimes democráticos pelo mundo como um dos principais objetivos a serem cumpridos por aqueles que se dizem dispostos a assumirem a liderança. Agradar (ao menos ‘tentar’) a todos é uma tarefa árdua, considerando tantos desafios e necessidades muito distintas de uma população. Mas, até que ponto o intuito de um governante é realmente esse?
Tomando como referência o mundo nos últimos 100 anos, podemos perceber uma infinidade de casos em que a aparente boa vontade de aspirantes a líderes encheram de esperança povos desestruturados. Inúmeras guerras e golpes políticos afetaram e desestruturaram nações inteiras e, o que parecia um sonho de melhorias, tornou-se o caos e gerou instabilidade para quem esperava justamente o contrário.
Isso nos revela que (mesmo nem sempre pregando abertamente essas ideias) os líderes políticos na verdade se usam da máquina eleitoral (e consequentemente de sua posição conquistada) para perpetuarem a ordem e os conceitos com os quais se identificam. Esse comportamento vai afetar diretamente a coletividade, a mesma que os confiou o poder para trazer o bem comum.
Todas as atitudes individuais ou de um pequeno grupo que atingirem os interesses do governo poderão de algum modo ser rechaçadas. O medo de uma iminente insurgência popular parece ser o mesmo da chegada de uma praga, algo como uma ameaça a um estilo de vida confortável e seguro. O mundo tem visto nessas últimas décadas, mesmo nas nações mais democráticas e liberais, como uma pequena fagulha pode ser apagada com o mais violento dos sopros.
O poder do Estado muitas vezes é associado com o poder à base da força para reprimir aquilo ao qual não deixará se sujeitar. Aqueles que denunciam ações sujas do governo são reprimidos para não deixarem suas informações passarem, os drogados são mostrados como a escória que deve ser eliminada das ruas para não putrefazer a sociedade, os considerados loucos são isolados dos demais ‘normais’... Uma rede de interesses que parte de quem comanda um povo.
Tudo isso nos permite inferir que a ideia do melhor para todos é apenas o ponto de partida nos discursos políticos, mas que, depois disso, se torna como algo perdido no meio de uma tempestade em que os governantes têm o total controle sobre os rumos de uma nação. Para conquistar o que desejam e manter a ordem do qual se beneficiam, eles se usam dos métodos que estiverem à disposição e passam a agir com base em seus próprios pensamentos, atingindo qualquer um que ‘resolva’ ou tenha o infortúnio de ficar na frente.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Aqueles que vivem dos mortos

O contato com o 'outro mundo' é encarado diariamente por trabalhadores em Resende e proporciona histórias e declarações curiosas


Túmulos, lápides, enterros, mortos... Tem gente que não quer chegar nem perto, ainda mais à noite, quando tudo parece mais sombrio e assustador. Mas viver ‘perto’ dos mortos faz parte da realidade de muitos que precisam ir diariamente aos cemitérios para obter sua principal fonte de renda. Atender pessoas que acabaram de perder seus entes queridos, cuidar da condução dos enterros e fazer a manutenção dos túmulos e de toda a estrutura do cemitério.
Essas são as principais atribuições daquelas pessoas que têm sua vida em função dos mortos, conceito um tanto paradoxal se colocado tão próximo, mas que é parte da realidade de todos nós, simples mortais. Consideradas por muitos como aquelas profissões ‘invisíveis’, que parecem distantes da realidade, mas que só se tornam nítidas quando se recorre a elas. Afinal, por que se pensar no seu destino final quando se está vivo e cheio de saúde por aí? Você se preocupa com isso? Já pensou em ter um espaço reservado para onde seu corpo vai depois de sua morte?
Como será então para quem lida com essas questões diariamente? Tentando entender um pouco do trabalho e do que pensam essas pessoas, é que fomos acompanhá-las em mais um dia de sua rotina. Sejam bem-vindos. O local é o cemitério.


SERIA SECRETÁRIA...
São 9 horas da manhã de um sábado. Enquanto muita gente curte o descanso no último dia da semana, a maior parte dos trabalhadores do Cemitério Municipal Senhor dos Passos, em Resende, segue a toda ativa com suas atividades habituais.
Sentada em sua cadeira numa salinha atrás da capela mortuária está a coordenadora Maria Aparecida da Silva Benanse, mais conhecida entre os funcionários e frequentadores como Cida. Em 2012, ela completa 13 anos do trabalho que surgiu como uma proposta não muito clara do então diretor do Cemitério.
_ A oportunidade veio quando ele me disse que precisava de uma secretária. A princípio ele disse que precisava apenas de alguém para trabalhar. Só depois que eu fiquei sabendo que o trabalho era no cemitério – contou bem humorada a funcionária.
Cida havia perdido o marido há menos de um ano naquele período e confessa que ficou receosa por causa disso no começo.  “Eu achei estranho por ser o lugar onde ele estava sepultado. Para muitas pessoas, é um lugar muito mórbido. Eu demorei uns três meses para me acostumar. Fui me adaptando aos poucos”. Nessa época, ela teve uma de suas primeiras experiências inéditas em cemitério, que foi assistir a um ato de exumação, quando os restos mortais são desenterrados e retirados da sepultura.


Cida é coordenadora do Cemitério Municipal Senhor dos Passos há mais de dez anos.

Como o lugar já desperta curiosidade de muitos e certa rejeição de outros, não é de se estranhar as primeiras reações que o trabalho de Cida despertou em seus familiares e amigos. “Meus filhos pediram para eu não vir mais. Eles não aceitaram de cara. Falavam que era muito estranho por ter que ver gente morta”. Quando as pessoas perguntam qual é o seu trabalho, Cida muitas vezes prefere dizer que trabalha na prefeitura, porque tem gente que ainda considera essa área um tabu. “A não ser as pessoas que já me conhecem, aí eu não escondo. Consigo falar normalmente”.
Para quem chega pela primeira vez e acha que seu trabalho é simplesmente ficar ali sentada, atendendo o público e olhando papéis, está muito enganado. As funções vão além e ela conta que ali é como uma secretária (para o qual originalmente havia sido chamada), administradora e ‘office-girl’.
_ Aqui eu faço atendimento para marcação de sepultamento, abertura de processos, cuido das certidões e fico ciente de todos os problemas que surgirem – seu trabalho vai de segunda a segunda, sendo que precisa estar no local em finais de semana alternados.
E todo esse contato diário com as pessoas que perderam parentes ou entes queridos recentemente exige muito cuidado e uma prática já adquirida nesses mais de dez anos de exercício da profissão. Lidar com pessoas muitas fragilizadas e/ou chocadas pela morte não é tarefa das mais fáceis e precisa ser feita pela funcionária. “Quando eles perdem um familiar, a minha própria experiência de vida ajuda, já que eu perdi marido, avós e primos. Tem pessoas que chegam aqui mais fragilizadas, enquanto outros vêm revoltados. Eu preciso ter habilidade para lidar com isso e converso com eles para relaxarem. Praticamente todos que vêm aqui saem melhor”, relata Cida.

“Tem pessoas que chegam aqui mais fragilizadas, enquanto outros vêm revoltados. Eu preciso ter habilidade para lidar com isso e converso com eles para relaxarem. Praticamente todos que vêm aqui saem melhor”. Maria Aparecida da Silva Benanse, a ‘Cida’, coordenadora.

Nesse tempo todo em que já trabalha no local, Cida disse não se lembrar de ter vivido alguma situação bizarra, mas duas histórias referentes a túmulos lhe chamaram a atenção nesse período. Um deles é o de uma jovem que ficou conhecida na região como ‘Santa Eni’. A funcionária do cemitério contou que muita gente vem, principalmente no feriado de Finados, fazer pedidos em seu túmulo na esperança de obter um milagre. Já outra sepultura é a de um antigo fazendeiro, que, segundo contam, negava água aos seus empregados. Cida contou que já viu seu túmulo minando água várias vezes.
Será que trabalhar no cemitério altera a mente de qualquer um que fica ali? Para Cida, mudou muito, inclusive nas atitudes. Certos hábitos que tinha antigamente, como tirar as roupas e o calçado após chegar do cemitério para entrar em casa, hoje são coisa do passado. “Hoje eu encaro a morte com naturalidade. Infelizmente faz parte da vida. Tem momento que a gente fica deprimida, porque pessoas que a gente gosta vão embora. Mas hoje em dia eu tenho uma impressão muito diferente da morte”.

“Tem momento que a gente fica deprimida, porque pessoas que a gente gosta vão embora. Mas hoje em dia eu tenho uma impressão muito diferente da morte”. Cida.


ENTERRANDO
Se para Maria Aparecida, o começo foi um pouco estranho, para Amauri Ludaceni dos Santos as coisas foram mais tranquilas. Ele, que trabalha como coveiro no cemitério de Resende há sete anos, começou no local quando estava desempregado e aproveitou a oportunidade de um concurso.
“O cemitério sempre foi normal para mim. Desde o começo, eu vejo esse serviço como qualquer um que tem ser feito. Eu preciso ter muita responsabilidade assim como teria em outros trabalhos.” Mesmo com essa facilidade na adaptação e comprometimento com suas funções, Amaury contou que lidar com o público, que neste caso específico, são pessoas que acabaram de perder alguém próximo, exige muita precaução. “A gente precisa fazer um balanço. Tem gente que nos trata muito bem, mas há outros que nos tratam com grande indiferença.”
O coveiro tocou em um ponto que diz respeito ao preconceito existente nessa área que lida diretamente com a morte. “Antigamente o coveiro era sinal de analfabeto, ignorante, sujo, pinguço. Mas hoje todos que trabalham aqui têm uma formação. Mesmo assim ainda existem aqueles que acham que podem dar uma ‘caixinha’ na forma de cachaça”, contou o funcionário.

O trabalho de Amauri é feito de segunda a sexta-feira, de manhã e à tarde, sendo executado junto com outros três colegas. A média costuma de ser de no máximo dois sepultamentos ao dia. “É um trabalho que não tem rotina. Tem dia que não tem nada, enquanto em outros a emoção é forte.”

Cláudio Eli de Souza (esq.) e Fabrício Antônio de Jesus (dir.)
tiveram seu primeiro trabalho de coveiro no cemitério em Resende.

E ficar enterrando corpos quase todos os dias, geralmente diante de um bom número de pessoas reunidas, não poderia deixar de reunir histórias inusitadas. “Às vezes o cara tem três amantes e elas aparecem juntas aqui no mesmo dia. Nos enterros, as crianças choram muito. O único choro verdadeiro é o de criança. Os de adultos são todos falsos”.

“Nos enterros, as crianças choram muito. O único choro verdadeiro é o de criança. Os de adultos são todos falsos”. Amauri Ludaceni dos Santos, coveiro.

E o trabalho no cemitério seria, sem trocadilho, ‘eterno’ para quem tem uma ocupação como a de Amauri? Parece que não, ao menos para ele, que já tem outros planos sendo colocados em prática. “Isso aqui é temporário para mim, mas não é por causa do trabalho. Eu quero abrir meu próprio negócio. Estou montando um ‘pesque e pague’.” E para alguém que já achava a morte natural antes de trabalhar em um cemitério, manter essa visão continua fácil quando se lida com o assunto todos os dias.

 
HORA DA LIMPEZA
No Cemitério Municipal Senhor dos Passos, são ao todo noves pessoas contratadas pela administração pública. Todos os outros que se dedicam regularmente ao trabalho são autônomos, além dos funcionários de empresas terceirizadas que aparecem no caso de obras no local. 
Isabel de Souza é a trabalhadora mais antiga do local.
Uma dessas autônomas é Isabel de Souza Moraes (foto), uma senhora que há quase 30 anos vem trabalhando na limpeza de túmulos, além da confecção de placas para serem colocadas nos mesmos. Anteriormente com experiência em escritório e tendo um filho para sustentar, Isabel precisava de um trabalho que não lhe ocupasse o dia todo. A indicação veio de uma amiga e a chance foi logo aceita. “Eu sempre achei normal esse lugar, mas a minha irmã achava que ia pegar alguma doença”, contou enquanto realizava seu trabalho do dia.

“Eu sempre achei normal esse lugar, mas a minha irmã achava que ia pegar alguma doença”. Isabel de Souza Moraes, limpadora autônoma de túmulos.

Isabel costuma ir ao local uma vez por semana e no dia de aniversário dos falecidos, limpando uma média de 60 túmulos por mês, intervalo em que recebe o pagamento dos clientes. “Quando eles vêm aqui, eu procuro não fazer muitas perguntas. Respeito e deixo eles sentirem a dor”.


AQUELAS HISTÓRIAS
Animada ao som de um funk carioca no celular, outra figura encontrada no mesmo dia trabalhando no Senhor dos Passos foi a auxiliar de serviços gerais Vera Aparecida Almeida. Envolvida no serviço de limpeza pelos corredores do Cemitério há apenas dez dias, ela relatou que já havia tido a oportunidade de ouvir sons estranhos no cemitério.
Isso mesmo, se você achava que ninguém tinha uma boa história misteriosa do local para contar, Vera foi a primeira no dia a revelar. Mas não pense que isso a assusta. “Dia desses, eu ouvi gritos ali perto da capela. Ouvi gente gemendo. Só que não fico com medo. A gente tem que ter medo é dos vivos”.
E trabalhando junto a Vera, estava outra com mais histórias pra contar: Leonice Ribeiro, que há pouco mais de um mês trabalhava ali. Em seus quase 30 anos atuando em serviços variados, o cemitério não lhe pareceu em momento algum um local diferente. “Eu nunca tive medo ou preconceito. Aqui é uma casa como qualquer outra. Inclusive é melhor do que muitas”.

Sobre suas experiências sobrenaturais no trabalho, Leonice relata com muita naturalidade o que já pôde passar. “Eu já vi várias vezes os espíritos andando por aqui. Como eu já havia tido visões em outros lugares antes, isso soou normal pra mim”, contou com a franqueza de alguém que não tinha nada a temer.

Vera Aparecida (esq.) e Leonice Ribeiro (dir.) são duas que têm boas histórias de mistério para contar.

“Eu já vi várias vezes os espíritos andando por aqui. Como eu já havia tido visões em outros lugares antes, isso soou normal pra mim”. Leonice Ribeiro, auxiliar de serviços gerais.



(Trabalho acadêmico)

terça-feira, 5 de junho de 2012

Um trecho

Há alguns anos, durante o colégio, me embrenhei em escrever meu primeiro livro. A história sempre teve seu foco bem definido numa de minhas temáticas favoritas: o mundo sobrenatural. De lá pra cá, escrevi, reecrevi, editei, reeditei... Enfim, ainda não terminei. Eis aí um trecho que selecionei de primeira mão pra quem já quiser conhecer um pouco da obra.




"Enquanto saíam do banheiro, um som estridente de vidro se quebrando ecoou pela imensidão da casa. Um vaso comprido que estava próximo ao topo da escada caíra do alto e se espatifou no chão da sala.
_ Meu Deus, como sou desajeitada! – Ruth lamentou olhando os pedaços lá embaixo – Devo ter encostado aqui na hora que passei. E olha só... Vocês me desculpam por isso? – mostrou-se bastante envergonhada.
_ Não precisa se preocupar. Não foi nada de mais. – Elizabeth passou calma.
Com o olhar de Ruth fixo no estrago, Steven propôs que fossem finalmente ver os quartos. O primeiro era o maior de todos, era um dos dois que tinha frente para a rua e seria o ideal para o casal. Beth achou escuros a madeira e os tons na parede, mas o local era bem provido de iluminação natural e uma pintura e um novo papel de parede seriam suficientes para dar um jeito. O quarto de frente deveria ser o de Adam, ainda muito dependente dos pais. Já Isabelle poderia escolher qualquer um dos demais, já que eram parecidos e estavam bem conservados. Ao final do corredor, era possível acessar o sótão, amplo e empoeirado como o porão e com alguns objetos deixados. Trazia um ar de solidão e vazio a ser preenchido em breve com as coisas da família.
Feita a observação de todos os cômodos da casa e uma avaliação positiva do que foi mostrado, era a hora de falar de números, uma especialidade do Sr. Hellyor.
_ Então, quanto vocês querem pela casa?
Não houve muito o que falar. Robert não se meteu e Ruth foi quem cuidou da negociação. Como já havia falado com um amigo corretor imobiliário de Detroit, Steven achou que o valor era na faixa do que imaginava e não se surpreendeu com o valor apresentado. Foi o suficiente. Acordo feito, agora só faltava a papelada burocrática e a mudança."

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Uma tela do século 21?


Foto: Reprodução

Confesso que demorei relativamente a aderir ao Facebook, que me parecia uma rede social cheia de funções diversas e, por isso mesmo, complexa demais para se administrar bem. Mas, com o passar do tempo, foi inevitável a entrada nesse sistema de possibilidades.
A meu ver, ele conseguiu unir (e muito bem) as funções mais executadas em outras redes sociais de sucesso: o bate-papo (outrora o carro-chefe do MSN), a publicação de fotos pessoais (antes do Orkut) e a exposição de ideias e compartilhamento de links (pra que servia o Twitter mesmo?....). Com tudo isso junto, ou você entra no jogo ou não usa nenhuma das funções (algo difícil de imaginar para a geração que se desenvolveu ao mesmo tempo em que a Internet tomava suas proporções atuais).
Diante desses fatores, o Facebook se tornou algo como uma janela que tanto se abre para uma infinidade de assuntos em seu próprio seio, quanto também se mostra receptiva para conteúdos vindos de outros meios – sites, TV, jornais, música... Tudo ali pode tomar novas dimensões, já que fica exposto para qualquer pessoa que decida por um clique.
Sem dúvida, hoje não há mais espaço para limitar uma discussão a um único veículo de imprensa (que pode abordar o assunto segundo sua própria linha editorial) ou, por exemplo, a um grupo seleto de intelectuais que falam conforme seu alto grau de instrução. Essa ‘nova TV’ abre espaço para todas as classes e o faz sem distinção, da mesma forma que cada um escolhe de que forma vai usar o espaço.
Outro ponto que merece ser falado é aquele que muitos criticam por parecer essa rede social uma ameaça à cultura dita tradicional. Mesmo que estudos recentes já tenham comprovado que o excesso de informações na web acarrete a dispersão do conhecimento, uma rede como o Facebook permite a aquisição de conteúdos que justamente partem da área de interesse do usuário. A ‘janela’ te dá sim várias possibilidades e pode acabar lhe proporcionando uma overdose de conhecimentos rasos, mas também lhe dá a chance de filtragem para um aprofundamento posterior.
Não sei até quando o Facebook será tão forte e se poderá adquirir uma importância igual ou maior a que a televisão alcançou na segunda metade do século passado. Mas a certeza é que essa rede social, nascida no meio universitário e hoje tão completa e acessível, além de ainda não ter uma concorrente em potencial, vale bilhões de dólares e continua atraindo usuários pelo mundo.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Meu mundo não era o mesmo

Assim como procedia todas as manhãs, fui acordado pelo meu despertador, daqueles antigos e bem chatos, que eu havia ganhado do meu avô. Tão logo meus sentidos eram aguçados para o dia, notei um som estranho que vinha de fora, como se máquinas passassem próximo a minha casa. Eu não estava acostumado com tanto barulho, ainda mais tão cedo, já que o lugar aqui sempre fora muito pacato. As árvores ao redor da casa, os pássaros cantando, as pessoas falando devagar... Um ritmo tipicamente interiorano.
Aquela manhã estava começando de um modo muito diferente. Levantei-me da cama e a primeira coisa a fazer era olhar na janela, o ponto de onde vinha tudo aquilo que me causava estranheza. Conforme puxava a trava, passei a sentir um calor incomum vindo do outro lado, como se estivesse prestes a entrar num forno. Eram apenas seis e meia da manhã e confesso que nem sei por onde começo descrevendo o que passaria a ser visto por meus olhos a partir daquele instante em diante.
O sol emitia uma luminosidade tão forte que nem nos dias mais fortes de qualquer outro verão eu havia presenciado. Só que isso foi só o começo da série de eventos que iriam seguir. Eu não vi mais o quintal verde da minha casa e nenhuma casa dos vizinhos por ali. Aquela área havia se tornado algo como uma rua, ou melhor, uma pista de pouso e decolagem. E do outro lado, um paredão branco. Não havia ninguém por ali. Somente veículos voadores!
Não podia ser. Eu fiquei completamente perdido, sem noção do que fazer ou imaginar. Fiquei atônito e corri para a porta de meu quarto, que estava trancada. Alguém havia me prendido ali enquanto eu dormia. Mas, espere aí: nenhuma pessoa, carros voadores, eu trancado sozinho... O mundo estava sendo invadido! Eram alienígenas tomando tudo! Por mais absurdo que seja para os céticos, foi a única coisa que a minha mente fértil conseguiu pensar. Só podia ser isso. Afinal, tudo estava perfeitamente normal na noite de ontem, 30 de dezembro de 2011. Nessa manhã, hoje, último dia do ano, algo chocante acontecia pra mudar tudo.
Assim que levantei nem tinha me dado conta, mas várias coisas de meu quarto não estavam mais ali. Minha televisão, pequena mas eficiente, meu aparelho celular e meu relógio de pulso foram os primeiros que notei a ausência. O calendário, que estava pendurado na parede, também fora retirado, exterminado, abduzido... sei lá o que acontecera de verdade. De qualquer forma, só estavam ali a minha cama, uma mesa vazia e meu guarda-roupa. Sim, o guarda-roupa. Ele era a última esperança de encontrar algo que pudesse me remeter ao mundo “real”, aquele ao qual eu pertencera até antes de fechar os olhos ontem. Aproximei minha mão da maçaneta dourada, já um tanto desgastada pelo tempo de uso, e girei lentamente, na expectativa de achar tudo como eu havia deixado.
Abri a porta. Tudo estava vazio. Não havia nada ali. Abri as gavetas em seguida, mas a mesma situação se repetiu. Fiz o mesmo nas demais portas e também não achei nem mesmo um pequeno pedaço de papel amassado que me desse alguma orientação. Aquele móvel parecia um móvel a ser transportado numa mudança de casa. Fiquei por um minuto parado ali no centro do quarto, rosto suando e os pés sobre o piso frio. Ao menos isso ainda continuava o mesmo, apesar de não contribuir em nada para elucidar aquele clima de mistério que se estabelecera inesperadamente numa manhã de sábado.
Já que eu estava naquela situação, repleto de dúvidas e carente de respostas, fui novamente para a janela. A mesma onde eu estava acostumado a ver os fenômenos típicos da natureza, como árvores mudando de estação, tempestades fortes e ventanias balançando tudo, a movimentação na vizinhança ou simplesmente o nada, naqueles dias de pensamentos distantes. No momento, o que eu podia ver não tinha comparação. Limitado pelas grades de ferro que estavam ali justamente para impedir a presença daqueles indesejados assaltantes, eu não podia sair do meu quarto. O mínimo e o gigantesco ao mesmo tempo, as noções de espaço ficaram confusas. O quarto ao qual eu estava preso era tudo que eu podia compreender como meu mundo, mas lá fora havia algo muito maior e de caráter desconhecido diante das transformações que teriam se sucedido durante a noite.
As pequenas naves passavam muito rápido e a todo tempo. Pareciam comportar o equivalente a uns três ou quatro homens, mas não era isso que eu achava que estivesse ali dentro. Olhando melhor para aquele paredão branco em frente, constatei um prédio gigantesco, sem janelas visíveis, e que parecia tocar nos limites do céu. Teria sido  a invasão das criaturas de outro planeta tão rápida e elas eram assim tão velozes para construírem tudo aquilo durante algumas horas? Fiquei tentando pensar.
Continuava a não ver nenhum ser humano por perto e só pude imaginar que tivessem todos sido exterminados ou levados pra algum ponto distante no universo. Será que só sobrara eu? Eles tiraram quase tudo do meu quarto e me trancaram ali. Provavelmente queriam fazer alguma experiência comigo!
Um alarme soou, um som estridente, como se viesse do alto da torre e ecoasse por todo o planeta. O som parecia invadir meu cérebro e não queria sair. Finalmente:
_ Bom dia! – meu Deus! Era uma voz humana! Enfim, algo que eu podia reconhecer. – São sete horas da manhã. – era uma voz muito grave. Um tom autoritário e impassível. Se aquela era a voz de um E.T., havia aprendido com eficiência nossa língua e enganava muito bem.
Prosseguiu:
_ Todos já para seus postos de trabalho!  O planeta não pode parar. – parecia uma mensagem para os funcionários de uma fábrica, mas eu nunca tinha ouvido nada assim na rua.
A voz, fosse lá de quem, deu uma pausa, mas voltou com tudo.
_ Vamos aos nossos recados do dia. Estamos encerrando mais um ano hoje e tenho o prazer de lhes informar que ontem foi impedido de nascer o bebê de número 50.000.000.000 no planeta. – meu corpo ficou gelado dos pés à cabeça.
O que era aquilo? Até ontem a população mundial era de sete bilhões. Quantas criaturas vieram para cá essa noite? Mas não tive tempo de ficar pensando em números, ele continuou.
_ Como sabem, a população da Terra precisa manter esse limite. Nós temos tomado  todas as medidas pra isso. – tive uma certa tontura e perturbação. Senti-me num pesadelo.
A voz pareceu mais contente em continuar seu discurso matinal:
_ Vamos aos destaques que anunciamos todos os dias. Garanto que todos andam cumprindo, mas precisamos ressaltar. – fiquei imaginando a boca de um torturador, salivando diante de sua vítima. – Todos aqueles que completam 65 anos de idade na data de hoje, tenham a honra de se dirigir à Câmara Mundial de Gás, no Centro da cidade, para que possam morrer com dignidade e contribuam para que os mais novos vivam num mundo melhor. – matando velhinhos?! Não! – Só lembrando também mais uma vez que cada casal neste planeta só pode ter no máximo um filho, e mesmo assim é necessário comprovar autossuficiência financeira para arcar com todas as despesas dele. O governo não pode se preocupar com nenhum cidadão individual. Aqueles que desrespeitarem serão presos e esterilizados, e seus filhos serão utilizados em experiências científicas ou enviados para as bases de adoção na lua. – Haviam se infiltrado mesmo no planeta e já estavam fazendo controles de natalidade e mortalidade.
_ Um dia bom e rentável, planeta! Fico por aqui com mais um informativo do Governo Central Mundial. – encerrou com uma sutileza irônica.
Assim que a voz terminou seus dizeres e eu tentava voltar a respirar com mais calma, veio outra voz, dessa vez feminina, parecida com aquelas que a gente ouve no aeroporto.
_ Bom dia, moradores do planeta! Tenho algo fantástico e inacreditável para lhes oferecer hoje.  Algo que não via há mais de 30 anos e só ouvia em histórias dos mais velhos. – ela me deixou curiosíssimo, por mais que eu não fizesse ideia de onde havia ido parar.
Aquilo tinha um tom de canal de vendas na televisão.
_ Queridos e queridas, ontem um senhor nos procurou para mostrar a coisa mais valiosa que se tem notícia hoje na Terra. Como hoje ele faz aniversário, acabou nos procurando para deixar uma maravilha que ninguém mais tem. – fiquei imaginando que fosse a pedra preciosa mais rara de todas. – Fico trêmula só de anunciar, terráqueos. Mas preparem-se...
Os segundos pareciam uma eternidade pra mim.
_ É com a maior honra de toda a minha vida que eu anuncio, homens e mulheres deste planeta: são 5 ml de água doce natural. Sim, senhoras e senhores. É algo que só nós temos. Um anúncio inédito. – fiquei literalmente de queixo caído. – Os dez primeiros que ligarem para a Central Mundial de Leilões poderão ser sorteados para o leilão e um terá o prazer de arrematar uma porção de água doce e natural. Não é a água artificial que vocês compram. É a única que nenhum outro terráqueo terá o privilégio de beber. – Estavam tomando o mundo, exterminando humanos e agora leiloando água! Eu havia acordado em outro planeta. Era isso.
Tão logo a voz anunciou a “grande raridade”, tudo parou. Imagino que todos devem ter começado a ligar para conseguir a vaga no leilão. Até ontem sempre tinha água aqui em casa, apesar de faltar de vez em quando. Mas pelo tom da propaganda tudo havia secado da noite para o dia  e as criaturas pareciam não estar acostumadas com esse líquido.
E eu continuava preso ali. Confesso que fiquei esperando para que alguém aparecesse logo, fosse lá uma criaturinha verde ou um alien horripilante. Mas eu só  queria que me explicassem de uma vez o que acontecera.
Estava muito ansioso para ver um rosto. Finalmente pude ver duas criaturas que desceram de um veículo no chão e passaram pra outro. Mas não podia ver seus rostos, sequer suas mãos. Estavam cobertas da mesma forma que um astronauta no espaço. Observando o máximo que pude, percebi  que eram como humanos andando muito depressa. As formas denotavam isso também. Seriam os E.T.s muito parecidos conosco?
Queria que meus pais e meu cachorro aparecessem ali, mas também não havia sinal nenhum deles. Só um mundo estranho lá fora. De ontem só sobraram eu e meu quarto. Apalpei-me bem pra ver se realmente meu corpo continuava o mesmo. Não tinha nenhum espelho por ali, mas pelos traços meu rosto também não havia mudado.
Começou um novo som, era como uma musiquinha infantil, dessas de propaganda de brinquedos.
_ Olá crianças terráqueas! – novamente eu não via de quem era a voz, mas imaginei imediatamente alguém vestido de palhaço.
_ Estamos encerrando mais um ano. Esse que acaba não foi tão divertido, mas vamos fazer que o próximo seja. Para isso, precisamos que todos trabalhem direitinho e produzam bastante. E vamos cumprir mais uma vez a meta: diminuir a população do planeta. Lembrem o papai e a mamãe: nada de ter outra criança. Está combinado, crianças? Eu volto a qualquer momento com mais novidades pra vocês! – sua voz tinha um quê de sinistro. Definitivamente não era alguém com quem eu gostaria de deixar uma criança.
Ele ainda não tinha acabado.
_ Um divertido 2070 para todos!
Não era invasão nenhuma! Muito menos uma guerra dos mundos! Eu havia acordado em 2070, no futuro. Tudo passou a fazer sentido: a população mundial, os carros voadores, o calor intenso, a raridade da água doce, o governo único...
Um outro alarme tocou.
Meu despertador novamente. Acordei na minha cama, com os olhos arregalados, como não poderia deixar de ser. Mas dessa vez tudo aparecia no seu devido lugar. Corri para a janela. Todas as árvores e casas da vizinhança voltaram a onde ficavam. O calendário marcava o dia certo: 31 de dezembro de 2011.
Ufa! Foi só um pesadelo. Pelo menos assim o foi pra mim, em 2011.
Já em 2070 eu não sei.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Nos bastidores da escrita


Contista e romancista, Jeanette Rozsas enriquece hoje o universo ficcional brasileiro com abordagem de temas diversificados


Do mundo jurídico para o campo literário. Foi essa a mudança escolhida pela escritora paulista Jeanette Rozsas, criadora de uma prosa diversificada e rica, presente em obras como ‘Autobiografia de um Crápula’, ‘As Sete Sombras do Gato’ e ‘Kafka e a Marca do Corvo’.
Interessada pela leitura antes mesmo de saber escrever, Jeanette conta que a coleção do ‘Sítio do Pica-Pau Amarelo’, de Monteiro Lobato, foi o primeiro contato que teve com a literatura que permearia sua vida. Os livros eram sempre o pedido de Natal e foi grande a influência dos pais, também ávidos leitores.
Na adolescência, os nomes de peso da escrita brasileira estavam entre seus favoritos: Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Aluísio Azevedo. Dos estrangeiros vieram Somerset Maugham, Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Graham Greene e Herman Hesse, só para citar alguns.
Desde sua primeira publicação em 1996, com a coletânea de contos ‘Feito em Silêncio’, Jeanette segue, além de seus livros, com a participação em antologias e sites de literatura. Hoje ela é integrante da União Brasileira de Escritores (UBE).


L&I – Como foi a mudança de ares da carreira de advogada para a de escritora? Que relação você consegue estabelecer entre as duas áreas?
JR  Quando vi a importância que a escrita ficcional tinha em minha vida, decidi largar a carreira de advogada. A relação entre as duas áreas está na palavra: como advogada, sempre atuei na área consultiva, portanto lia, pesquisava e escrevia de manhã à noite. Além do mais, o parecerista deve ter o raciocínio claro e a linguagem enxuta, qualidades imprescindíveis no escritor.

L&I – Em ‘As Sete Sombras do Gato’, o protagonista vive uma série de eventos fantásticos e vai aos mais diversos ambientes recônditos. Como é criar essas passagens e visualizar os cenários da história?
JR  Um dos livros que mais gostei de escrever foi este. Ficcionei com total sentimento de liberdade. É um romance de contista, pois contém vários episódios, verdadeiros contos, alinhavados por uma trama que mistura gótico, detetivesco, referências literárias, lugares e paisagens distantes numa aventura delirante. O fio condutor é o gato. Como adoro viajar, paisagens e atmosferas diversas fazem parte dos meus livros, ainda que eu as inclua na trama de forma inconsciente.

L&I – Já na obra ‘Kafka e a Marca do Corvo’, você usou como protagonista o célebre escritor austríaco Franz Kafka. Como foi a experiência e o desafio de romancear a vida de um personagem real sem distorcer partes de sua história e ainda construir uma narrativa inédita?
JR – Posso dizer que foi penoso, angustiante e sofrido, mas altamente gratificante. A forma que ele se comunicava, mesmo em bilhetes de poucas linhas, era tão peculiar e genial que não havia como tentar reproduzi-la. Foram três anos de  muita pesquisa, noites insones, tentativas frustradas. Até que a idéia despontou: deixar Kafka falar por si próprio.  Tantas cartas, diários e a própria obra ofereciam material de sobra para que eu tirasse falas e pensamentos sem distorcer a história. A parte da ficção entrou na criação de situações onde esses diálogos ocorrem, com a maior fidelidade histórica e biográfica. Posso dizer que é um trabalho artesanal, um  verdadeiro quebra-cabeça. Mas valeu cada segundo. Afinal das contas, andei grudada na vida e obra de Kafka por vários anos, o que é uma experiência fantástica.

L&I – ‘Qual é Mesmo o Caminho de Swan’ é seu único trabalho com poesia?  Consegue ter uma preferência de gênero entre contos e poesias?
JR  Obrigada por considerar esse livro como sendo de poesia. Talvez você tenha encontrado nele a prosa poética de que tanto gosto. Na verdade, não escrevo poesia, a não ser algumas tentativas frustradas na juventude. Dos gêneros literários acho o conto o mais sofisticado e certamente o mais difícil. Uma palavra a mais ou fora de lugar pode estilhaçá-lo, sem possibilidade de salvação. A dificuldade já começa no nome. Nomear um conto  é uma arte. Fazer um livro de contos equilibrado e de qualidade é um feito.


‘Nomear um conto é uma arte. Fazer um livro de contos equilibrado e de qualidade é um feito’.


L&I – No romance ‘Autobiografia de um Crápula’, o foco é um tema caro a muitos escritores nos últimos anos: o mundo das organizações criminosas. O que te atrai e como é abordar temas de certo modo distantes de sua realidade?
JR  A vida é muito rica. Não faço literatura confessional. A realidade ficcional é sempre bem mais interessante, ainda mais quando nos colocamos como observadores. Falar sobre qualquer tema que possa dar um bom livro ou um bom conto, porque não? Quanto a usar organizações criminosas como trama em ‘Autobiografia...’ era quase inescapável. Este romancinho foi escrito para um concurso patrocinado pela Associação dos Magistrados Brasileiros e uma das personagens deveria ser um juiz federal, já que o crime organizado está dentro do âmbito de competência da Justiça Federal.

L&I – Como foi realizar a parceria com o escritor J. B. Gelpi para o livro ‘Morrer em Praga’? De que forma isso diferiu dos seus demais trabalhos?
JR  Esse foi o único livro que escrevi em coautoria, pelo menos até o momento. Com o J. B. Gelpi funcionou bem: ele tinha feito muitas anotações sobre o que pretendia escrever. Em cima desse material e das várias reuniões que tivemos, pude construir um romance no qual sua vida trágica era contada. O mais complicado foi escrever em primeira pessoa, como se fosse o próprio Gelpi narrando sua trajetória muito agitada, para dizer o mínimo. Tive que introjetar a sua voz e abster-me de deixar transparecer qualquer opinião própria ou juízo de valor, caso contrário perderia totalmente a verossimilhança.

L&I – Você já leu algum livro no formato digital? Acredita que esse será o padrão do futuro e vai ‘enterrar’ o papel?
JR  Só leio em formato eletrônico os livros para pesquisa. Os que são para o meu prazer têm capa, orelhas,  folhas, cheiro, cor e lugar na estante. No entanto, acho que mais cedo ou mais tarde, livros físicos  passarão a ser coisa de colecionador. Os e-books chegaram para ficar em razão do preço e da facilidade de reunir e transportar um sem número de títulos.

L&I – Você considera que publicar textos na Internet é um bom caminho para escritores iniciantes? O que recomenda para quem está começando no mundo da literatura?
JR  A Internet é um instrumento que ajuda muito, sem dúvida. Já tive textos publicados até mesmo fora do Brasil. Fui ‘encontrada’ por jornalistas e professores de literatura no universo virtual. Quanto a blogs e sites pessoais não sei responder, mas sem dúvida um bom site literário pode ajudar muito o escritor, seja ele novato ou não. Meu conselho é ler, escrever, ler, escrever, ler, escrever... Submeter seu texto para algumas pessoas e ouvir as sugestões, mesmo que não ache que deva incorporá-las.

L&I – Está envolvida em algum projeto atualmente? O que já pode nos adiantar?
JR – Sim, sempre. Não consigo ficar sem trabalhar. O meu novo projeto trata de três autores ingleses que tiveram vidas fascinantes e entrelaçadas. Por enquanto, não posso contar mais nada...

L&I – O que está lendo no momento?
JR  Eu estou sempre lendo. E mais de um livro. Um vai na bolsa, outro fica na minha mesa de trabalho, outro no carro, outro na cama. No momento estou lendo ‘Góticos - Contos Clássicos’, organizados por Luiz Antonio Aguiar; ‘Marina’, de Carlos Ruiz Zafón; e ‘Mano, a Noite Está Velha’, de Wilson Bueno. Sem falar nos livros de pesquisa referentes aos três escritores ingleses secretíssimos que fazem parte do meu novo projeto.

L&I – Na sua opinião, o que é um livro bom?
JR  Um livro bom, pra mim, não precisa ser sempre do tipo grande literatura, que vá modificar sua forma de ver o mundo. Ou como dizia Kafka, que seja ‘o machado para o mar enregelado que temos dentro de nós’. Na minha modesta opinião de escritora e sobretudo de leitora, a leitura pode ser agradável, a assim chamada literatura ligeira, desde que bem seja  escrita, trama redonda e bem cuidada, temática tratada de forma original.


‘Na minha modesta opinião de escritora e, sobretudo de leitora, a leitura pode ser agradável, a assim chamada literatura ligeira, desde que bem seja escrita, trama redonda e bem cuidada, temática tratada de forma original’.



http://www.ube.org.br/ (Site da União Brasileira de Escritores)