domingo, 27 de dezembro de 2015

Sonhe com os sonhos





Que são sonhos se não somente visões projetadas em nossa mente?
Uma vida sem sonhos seria como um pedaço de pedra quebrada? 
Mas, como assim se até a mais dura das pedras tem a sua unidade e função?
Sonhar então seria nada mais do que a simples projeção de uma vida que queremos?
Possível uma vida sem sonhar? 
Impossível, já que até a mais desiludida das almas tem seu sonho: 
a morte. 
Já para os da vida, o sonhos são constantes.
E nos fazem viver.


domingo, 13 de dezembro de 2015

As últimas horas de Pierre

Manhã. Consultório de Augusto.


BIANCA: Alô. Doutor Augusto? É o senhor que fala?
AUGUSTO: Sim, sou eu. Esqueça o doutor. Só psicólogo.
BIANCA: Doutor... Augusto, meu nome é Bianca. Eu era namorada do Pierre.
AUGUSTO: Meus sentimentos, Bianca. Fui informado da morte dele. Ontem. Eu não sei o que dizer. O Pierre era um dos meus principais pacientes, mas ele interrompeu o tratamento. Falei com a mãe dele. Tentei ligar pra ele várias vezes, mas nada. Seu namorado estava precisando muito de ajuda.
BIANCA: Eu sei. Não é fácil pra mim. Não consigo digerir. A gente não vivia uma das melhores fases. Você sabe bem como ele era. Montanha-russa. Sumiu várias vezes nas últimas semanas. Até isso acontecer.
AUGUSTO: Eu entendo perfeitamente. Transtorno bipolar não é fácil de lidar. E o quadro depressivo dele estava se agravando. Eu já havia passado a recomendação para um psiquiatra. Falei com um amigo, indiquei. Fiz o que pude. Mas, enfim... Não deu tempo.
BIANCA: Então, doutor, eu estou ligando. É porque eu acho que ele não se matou. O Pierre foi assassinado, doutor.
AUGUSTO: O quê?
BIANCA: Alguém matou meu namorado. Ele não estava bem, eu sei, mas ia fazer aquilo daquele jeito. Ele era orgulhoso. Não ia deixar seu corpo terminar num lugar como aquele. Só pode ter sido alguém da família dele.
AUGUSTO: Bianca... Bianca, faz o seguinte. Passe aqui, à uma da tarde. Pode ser? Eu converso com você no meu horário de almoço. Vai ser melhor, por gentileza.
BIANCA: Eu? Por quê?
AUGUSTO: Você precisa. Ok? E não conte nada disso pra ninguém? Você já sabe onde fica meu consultório. Tudo bem?

Telefone desligado. Augusto coloca os óculos e vai até a estante, pegando um caderno com o nome de Pierre escrito na capa. Dentro dele há algumas folhas soltas. Augusto senta-se, bebe uma golada de café e abre o caderno, começando a olhar os desenhos. Um deles traz um rosto masculino com cabelos desalinhados e olhos fechados, caídos. Outro traz uma mulher em lágrimas. Noutro, uma criança pequena está solitária no meio de rua em meio a adultos de pernas compridas passando.

AUGUSTO: Eu sou um grande incompetente ou você conseguiu me enganar, Pierre? Eu contribuí pra isso acontecer? Por que não mandei que te internassem, seu louco? Morto. Assassinado? (riso nervoso) Por que eu não virei advogado?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O casarão escondido na montanha do vale




Era uma tarde ensolarada, mas destas ameaçada pelo sono. O filme estava parado. O corpo e a mente lutavam para ver o que prevalecia naquele momento. Por fim o sono foi aquele que triunfou. Sou avesso a diários, mas os tolero quando a necessidade de escrever sentimentos ultrapassa qualquer um daqueles pensamentos excessivos, idiossincráticos. Palavra pretensiosa esta. Vem um discurso típico talvez de um existencialista, jovem adulto, se é esta a expressão correta, um que não tem mais ideia do que o futuro pode fazer por ele ou ele pelo futuro. Pensamentos talvez depressivos, que negócio chato, dominando sua mente e reduzindo o ser a um saudosista de épocas e emoções não vividas sabe-se lá por que, assustando-me de tal forma que não sei mais se é uma rua sem saída ou se as possibilidades estão escondidas por detrás das árvores e velhos portões. Buscava apenas uma sensação frágil, tênue, volátil. Não sei definir em uma algo de tamanha complexidade. Parem de me torturar com perguntas para explicações que não sei dar.
A verdade é que eu não sei como havia lá ido parar. A primeira coisa que me ocorre é a lembrança de um ambiente campestre, imagine desses típicos. As árvores nativas, muito verdes da Mata Atlântica, os pastos que deixam um vazio na paisagem, salpicado em alguns pontos pelas cabeças de rebanho e outros animais, livres, que seguem suas vidas rotineiras. O que não havia ao meu alcance eram pessoas, qualquer sinal que fosse, a certeza de uma solidão, ao menos momentânea. Estava ali parado naquela estrada de terra clara, pedregulhos, buracos aqui e acolá.. Era uma ladeira. Vi o vale lá embaixo e, mais adiante, as montanhas azuis distantes.
Eu, corrido para a montanha, um impostor da minha vida, era como eu me sentia. O rio, no meu vale, serpenteava lá embaixo, misterioso e discreto, suas águas serenas seguindo para um mar que muitos quilômetros depois teria que enfrentar. Eu pedalei, fugia de tudo, todas as minhas obrigações sociais, humanas, profissionais. Não queria mais nada. Minha bicicleta e minhas roupas eram o pouco que me conectava ao passado do qual procurava me afastar ao atravessar os atalhos, eucaliptos e pássaros diversos, andorinhas, abutres, bem-te-vis, alguns cantavam e cruzavam os céus com sua liberdade invejável. Deixava meus restos pelo caminho. O silêncio, como aquilo me fazia bem. Não queria ver qualquer humano. Talvez apenas um, mas ele não vivia mais. Só em minhas memórias, às vezes preferia me iludir. O suor dominava minha fronte nas muitas pedaladas e trechos caminhados, sustentados pelos meus pés magros.
Os anos nos separavam. O menino virou homem, perdeu a ingenuidade, ilusão, talvez ganhou mais força, um pouco de pé no chão, rapaz.  Era terra dura. As máquinas andaram mexendo com a superfície dos morros, mas o vale não. Continuava lá, belo, intocável. Ninguém vai tirar esse vale daí, eu repetia. Não queria perder a imagem jamais. Pra sempre dentro do meu filme.
O tempo já estava fechado, nuvens suaves encobriam o céu, mas isso não me abalou. Virando-me de costas, constatei que havia, ali à frente, algo como a sede de uma velha fazenda. Um casarão atraente de paredes brancas, amareladas e marcadas pelas infiltrações do descaso. O portão era alto, grades metálicas enferrujadas, ao fim de uma ruela. Quantas árvores grandes cercavam aquela casa! Pareciam protegê-la, isolá-la das forças sufocantes que viessem de fora. O silêncio que eu sentia era tão forte quanto a sensação de ouvidos tapados. Acho que todos os pássaros e criaturas resolveram se calar por aqueles minutos.
E eu não queria me aproximar do portão comprido, marcado por seu grande leão de dentes ameaçadores ao centro, com o temor de ser visto por qualquer pessoa que ali se escondesse. Não podiam pensar que eu espionasse a casa, não, eu não o fazia. Estava apenas seduzido pela casa dos sonhos. Segui pela calçada de concreto envelhecido e fui ali pela lateral, contornando a casa que era das construções mais fascinantes. Todas aquelas janelas fechadas, eu imaginava olhos me espionando. Crianças curiosas, criadas prudentes, homens da segurança. Mas não havia sinal algum. O muro tinha, em cima, três segmentos de arame farpado, nada de câmeras que pudessem dar a ilusão da proteção à propriedade do meio do nada.  Conforme subia pela calçada, a rua ficava mais baixa e eu, tolamente, sentindo-se livre do perigo.
Já estava me aproximando de um portão menor, de madeira, fechado, talvez uma entrada de funcionários. Eles deviam ser mesmo uma família de posses, fartura, festas elegantes. Mas algumas vozes masculinas começaram a quebrar meu sossego, invadiram meu recanto. Tomado pelo medo de ser descoberto por quem quer que fosse e aos quais não saberia dizer uma só palavra como ali havia chegado, tratei logo de me esconder debaixo de um arbusto de folhas verdes e amarelas, mas havia espinhos e eu me machucava, não percebia, não me importava. Queria apenas não ser notado. Dois jovens pedalavam velozmente suas bicicletas, conversando empolgadamente, sorrisos no rosto, assunto que devia satisfazer muito bem os dois. Estavam tão ligados, os dentes arreganhados direcionados um ao outro. Eles desceram pela continuidade da estrada e sumiram do meu campo de visão. Respirei aliviado, levantando-me e passando as mãos pelos braços para tentar amenizar o incômodo deixado pelo esconderijo.
Passado o susto, coloquei o pé num buraco do muro e espiei parte da propriedade, os fundos. Quanto mato ali havia, uma bela piscina de azulejos azuis rachados, água suja acumulada, flores tristes que cresciam em meio às daninhas grosseiras. Rachaduras, madeiras podres, telhas caindo, era a decadência do lugar que visitara em alguma ocasião, mas eu não conseguia me recordar da maneira que fora.
O que eu queria era só estar na companhia de uma pessoa, dele, nós dois adentraríamos e o lugar seria transformado. Belo, colorido, vivo. Eu te espiaria pela vidraça e você, timidamente, iria me rechaçar, sem graça de ter te visto, ainda sem suas roupas. Você não pensava que eu sentia aquilo, mas sempre houve. Eu só esperava o seu sinal, meu querido. A casa velha dos meus sonhos iria se tornar sua também, mas com a mudança que eu tanto esperei. A mudança ao seu lado. Eu temia que você me notasse como eu sempre quis, mas gostaria que abrisse a porta e me convidasse para entrar. Que você sentisse o mesmo que eu. Não veria mais uma construção em declínio nem me esconderia dos passantes, a casa seria nossa e não teríamos mais vergonha de nosso sentimento. Não teríamos mais vergonha daquele lugar, tudo seria belo e reconfortante.
Minhas fantasias têm sido tão reais que temo estar enlouquecendo. Os sonhos que de tão claros parecem ter sido compartilhados contigo, aumentando minha culpa, mas também minha vontade de concretizar o toque, o beijo de verdade, o cheiro de sua pele. Você sabe ou não o que fizemos num daqueles cômodos do casarão distante? Pra mim foi de verdade. E você já deve ter percebido. Não estive lá sozinho. Eu precisava abrir o portão, reabrir o lugar das minhas memórias secretas. Elas estavam lá, escondidas, protegidas pelas paredes em ruínas. Ajude-me a salvá-las. Tenho medo de perder o velho casarão. Ou de nunca mais saber voltar lá.

domingo, 22 de novembro de 2015

Historietas de terror ao redor do mundo



Separation, de Edvard Munch


FIM
Durante a infância, na casa em que morávamos, eu tive muitas vezes a visão de um homem sério, alto, que ficava a me encarar. Meus pais nunca acreditavam em mim e eu acho que eles nunca perceberam nada de errado. Como ficamos na casa por menos de um ano, depois de lá eu nunca mais vi aquele homem de novo. Mais tarde, quando já era adulto, resolvi pesquisar e descobri que um senhor morou na casa com a esposa, que acabou morrendo ao dar à luz. A criança também não sobreviveu. Sem ânimo para a vida, o homem optou por causar seu próprio fim.
(Joseph Wilder. Northampton, Inglaterra)



ELE FOI
Desde que meu marido morreu, eu não vivo mais. Cada retrato, quadro na parede, peça de roupa, o perfume, tudo que sobrou dele. Não me desfaço. Eu o sinto em cada canto da casa. Foram muitos anos de convivência. Não consigo largá-lo. Ou é ele que não pode ficar longe de mim. Uma mistura de saudade com o medo. Talvez eu nunca mais vou ser feliz de novo. Se não tivessem lhe tirado a vida, hoje nós estaríamos juntos, deitados em nossa cama. Não sei o que acontece do outro lado, mas deve ser melhor do que esse mundo sombrio em que estou.
(Giulia Cardinale. Siena, Itália)



VENTOS
Já tem muitas décadas que moro aqui nesta mesma casa e tenho que confessar. Sim, eu já tive algumas experiências bem incomuns. A que eu mais me lembro ocorreu quando meus filhos eram pequenos. Durante uma noite, eles me acordaram dizendo que havia duas crianças batendo na janela do quarto. Eu olhei bem ao redor da casa, mas nunca via qualquer sinal de gente. Nem de bicho. Era uma noite bem fria, o mar agitado e o vento não sossegava.
Conversando com pessoas mais velhas aqui da região, eles me falaram da lenda de dois irmãos que morreram afogados num naufrágio muito tempo atrás. Eles apareciam a cada ano para uma família que tivesse crianças, sempre no aniversário de morte.
(Marta Oliveira. Cabo Frio, Brasil)



LÁBIOS VERMELHOS
Como aqui é uma região afastada e cheia de montanhas, só de olhar a gente já se perde na paisagem. É tão bela, mas assusta também. Quando eu era moço, rapaz começando a viver, naquelas festinhas na comunidade, com as músicas e comidas que o povo sabia fazer tão bem, sempre vinham alguns visitantes, pessoas de fora, para confraternizarem com a gente.
Numa noite daquelas, veio uma moça tão bonita, das mais belas deste mundo. Tinha o rosto de um encanto que eu nunca mais tive a chance de ver na vida. Nas noites seguintes, nós sempre nos encontrávamos e tínhamos muita conversa. No começo era uma coisa ingênua, sem malícia, mas valia cada segundo. Depois não resistimos e nos entregamos. A moça dizia que estava acompanhada de uns parentes e sempre ia embora na manhã seguinte, no meio do grupo que vinha de fora. No último dia, antes de sair da cidade, ela deixou anotado o endereço de onde morava, um lugarejo que eu não conhecia, mais ao sul.
Quando resolvi ir até lá, acabei parando em uma colina, região afastada de casas. Aquele era o nome e o endereço da mulher. Laura. O sobrenome não me lembro mais. Estava morta ali, sua lápide de concreto rachado e a foto amarelada do rosto que me fascinou. Passados mais de sessenta anos, já viúvo e com meus filhos, netos e bisnetos, aqui ainda estou a me lembrar daquele rosto muito claro, como leite, olhos negros e os lábios tão vermelhos. Eu nunca mais a encontrei na minha vida.
(Christopher Wright. Whangarei, Nova Zelândia)



BEM-VINDO
Todo mundo vê fantasmas nesta cidade. É o estresse, a violência nas ruas, as tragédias na televisão, são as drogas, os remédios para dormir e sossegar. O que você espera? Algo diferente disso? Assombrações são o que menos me assustaria se eu visse por aqui. Ainda mais nos Estados Unidos da América.

(Dr. Daniel H. Robbins, PhD, psiquiatra, Nova York, Estados Unidos)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A morte é bem viva



Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!
(Cazuza - música "Boas novas")


Hoje comemoramos por aqui o Dia de Finados, ou Dia dos Mortos. Evento marcado, sobretudo, pela lembrança dos que já estiveram ao nosso lado, em tom saudosista e muitas vezes melancólico. Porém, em culturas como a mexicana, o dia é comemorado em cores vibrantes com festas de tradição indígena que procuram celebrar os mortos de uma forma alegre. Em meio a diferenças culturais e religiosas das mais variadas, a obsessão do homem pela morte é um dos temas mais recorrentes na filosofia e na literatura. Afinal, o que acontece depois que saímos daqui? Continuidade em outra dimensão, reencarnação ou simplesmente o fim total, como uma máquina que para de funcionar e nunca mais voltará?
Pegando desde uma obra clássica como a "Divina Comédia", de Dante Alighieri, e sua icônica divisão em Inferno, Paraíso e Purgatório, até o desespero de um homem tentando trazer seu filho e mulher mortos de volta à vida em "O Cemiterio" (livro de Stephen King e filme lançado em 1989 - foto acima), só viver não se mostra suficiente para nós. Precisamos saber se vale a pena acreditar na transcendência da matéria ou apenas que a vida é difícil e não há solução se não o conformismo de que não podemos mudar o que não depende de nós? 
A finitude ou não da vida neste planeta é um tormento que divide religiosos, céticos, médicos, cientistas e tantos outros que sentem um fascínio na busca por essa resposta. Hora marcada ou simplesmente acaso? Podemos procrastiná-la através de ações diárias ou viver despreocupadamente, já que mais cedo ou mais tarde ela vai chegar? Referência perfeita é o duelo de xadrez entre um cavaleiro e a Morte em "O Sétimo Selo" (1957), uma das obras-primas do cineasta Ingmar Bergman, artista que se aproveitou muito bem da angústia existencial e o eterno conflito entre homem e Deus.
Coincidentemente, os dois últimos livros que li também flertam com o fim da vida diretamente. Em "A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstói, o personagem principal é um típico burocrata russo que achava que levava uma vida digna, com os valores de uma pessoa de elite, vivendo para agradar os outros. Mas ele percebe que se sente mesmo vazio, incluindo um casamento infeliz, enquanto agoniza de uma enfermidade e vê a cara da morte cada vez mais próxima.
A obra seguinte, também notável, é "Os Sofrimentos do Jovem Werther", do alemão Goethe. O livro é composto, em sua maioria, por cartas que o protagonista envia a seu amigo relatando  experiências profissionais, visões de mundo e o principal: sua imensa paixão por uma moça que está para se casar. E é justamente esse amor quase impossível, doloroso, que leva o jovem a entrar num estado de depressão e afastamento da realidade, culminando no que nem preciso dizer o que é.
Aproveitei essas pequenas analogias para falar sobre esse assunto que me intriga tanto. Não faço ideia do que acontece depois do aqui, mas sigo tentando e nada melhor do que ler bons escritores e escrever um pouco de vez em quando sobre o tema para compartilhar essas inquietações. E seguimos. Vivos.




quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O que terá acontecido na 246 ontem à noite?




A melhor oportunidade profissional na vida de Steven fez com que a família Hellyor se mudasse para uma bela casa em Nova York. Ao fundo havia uma imensa floresta escura. Mas não era de lá que vinha o perigo.


"Pilotando despreocupadamente, Veronica chegava à rua para o primeiro dia novamente com os Hellyor. A movimentação era gritante. Viaturas policiais misturavam-se a veículos de imprensa com seus respectivos profissionais, os moradores da rua e outros curiosos ao redor. Isolada a 246 com as faixas de isolamento, Veronica estacionou sua moto alguns metros do local de trabalho, até se dirigir a um homem que parecia coordenar no meio da aglomeração. Era o inspetor Matthew Lambert, um sujeito loiro, por volta de 50 anos, um cigarro em uma das mãos e o celular na outra. A pequena funcionária da casa, sem se concentrar em qualquer pessoa ao redor, tentava obter a atenção do inspetor.
_ Bom dia... – pareceu não obter retorno, mas foi atendida rapidamente.
_ Bom dia. Posso ajuda?
_ Sim, eu sou Veronica Borkman. Funcionária da casa. O que houve aí, meu Deus?
_ Venha – o homem não perdeu tempo e afastou-a da zona de barulho.
_ O que...
_ Dois homens mortos nesta casa. Criminosos. Não se preocupe.
_ Nossa... Mas... eu estive ali ontem. Que horror.
_ Menos dois bandidos no mundo. Limpeza divina – uma senhora de roupas coloridas, desconhecida para Veronica, interveio na conversa.
_ Mas o que houve? Foi a polícia que matou? Foi isso?
_ Não. Não sabemos de qualquer detalhe. Estamos investigando. Os vizinhos me informaram que a família está em férias. Certo?
_ Sim, eles voltam hoje. Eu deixei a casa preparada ontem. Jesus, esta rua é o lugar mais calmo que conheço. Já presto serviço aqui faz mais de 10 anos.
_ Achamos melhor não ligar pra eles. Não queremos criar pânico. Desagradável até pra nós que lidamos com isso. Agora preciso voltar, moça. Com licença.
Olhando para todos os seus conhecidos vizinhos ao redor, Veronica não teve vontade de se aproximar de qualquer um deles, via-os como estranhos prontos a devorá-las com seus globos oculares arregalados e perguntas que ela não saberia dar qualquer resposta. Sentia-se como a mais próxima da família Hellyor no momento, o único elo possível. Ruth, de braços dados a Robert, uma preocupação pouco habitual para seu padrão de comportamento. Notou que Anne trazia o semblante cômico e preocupado ao mesmo tempo, segurando um de seus bichanos, próxima do misantropo Albert, visto na rua depois de semanas escondido em seu único refúgio.
Veronica, o corpo abalado e as mãos fracas, apoiou-se em um poste, metal frio, sentia a cabeça girar, uma espécie de culpa não sabia o por quê. Gostaria de saber responder a alguma das perguntas do inspetor e, mais ainda, saber usar as palavras certas para tranquilizar a família antes de sua volta. Talvez eles já estivessem sabendo, imaginou. Quem eram os homens que sabiam exatamente a hora que ninguém estava ali? - ficava se perguntando. - E como eles morreram?"


E os trechos dos últimos capítulos sairão em breve... Não perca...

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A loucura da esperança




Ser otimista soa como tolice ou ingenuidade hoje em dia. E o pessimista é visto como o chato, amargo e desiludido. Então, o que nos resta quando temos uma série de motivos para achar que as coisas não estão dando certo em aspectos importantes de nossas vidas? Da crise política e econômica que nos preocupa e irrita diariamente em todos os meios de comunicação até os problemas mais banais de trânsito, convívio social, contas que vão vencer... E ainda precisamos saber o que fazer com os sonhos, projetos, vida amorosa... -coisas que, teoricamente, poderiam ser deixadas de lado temporariamente. Viver está mais difícil ou estamos ficamos preocupados demais?
A obsessão com as mensagens que mandamos e aguardamos retorno, a resposta da entrevista de emprego, a aprovação na prova, a meta da casa própria etc. Sem contar a nossa autoestima. Preciso estar bem comigo mesmo e deixar isso claro?! Sem dúvida, vivendo um momento sem precedentes, em que pessoas de diversas idades sentem uma necessidade de mostrar que são proativas, interessantes, com qualidades acima da média. E para constatar um dos efeitos dessas paranoia basta ler matérias e pesquisas alertando sobre o aumento no número de pessoas que procuram ajuda para lidar com depressão, ansiedade e uma porção de questões ligadas à parte psicológica. Os medicamentos de tarja preta nunca estiveram tão na moda. Dorme pouco? Toma remédio. Quer emagrecer? Toma remédio. Seu filho é agitado: dá remédio. Quer "fugir" da realidade: tome remédio. E há os que seguem para o caminho das drogas ilícitas (receita?) ou para o outro que nem preciso dizer qual é. Mas, enfim, isso já é algo mais sério e para especialista.
Só não gostaria de deixar de aproveitar este momento pelo qual passamos, com tantas incertezas (talvez certezas demais também) e mudanças tão rápidas que estão assustando muita gente. Aonde vamos parar com o demasiado uso da tecnologia, informação rápida e necessidade de satisfação, a tal falada "felicidade"?
Intelectuais odeiam os famosos livros de autoajuda, mas quem nunca se pegou lendo e compartilhando frases de efeito otimista? Se estou aqui e e sei que vou morrer um dia, pra que investir na vida? O famoso sentido da existência que permeia as discussões milenares de religiosos e filósofos. Mas não é pra dar respostas que falamos sobre isso. Acho que queremos apenas ver pessoas compartilhando das mesmas angústias existenciais em espaços como este. Sei que há muitos que, assim como eu, pensam diariamente nessas questões e buscam seguir em frente, tentando ficar à vontade num mundo que, friamente, resume-se a crescer, estudar, trabalhar, ter seu espaço físico, constituir família, envelhecer e morrer. Fórmula fácil, talvez.
A imagem no topo e o trailer abaixo são do filme "Delírio de Loucura" lançado no cinema americano em 1956 (!), provando que a tal busca de bem-estar em meio ao caos social, definitivamente, não é coisa de agora. O filme conta a história de um professor de classe média que se torna dependente de uma droga "milagrosa", o que, por sua vez, afeta muito sua relação com a família. A obra encontra-se disponível no mercado de vídeo no Brasil. E seguimos refletindo neste maravilhoso estranho mundo, sem esperar por pílula mágica.




sábado, 12 de setembro de 2015

A Noite de Adelaide (uma peça inédita)




Quando se está acostumado a abdicar tão cedo de sua identidade, perde-se a noção do que é natural, verdadeiro, e a gente se torna cúmplice da nossa própria mentira. Perdi-me nisso e não sei mais o que faço por aqui, se valeria a pena insistir nesse esforço doentio de agradar na arena das feras. A pior perda é aquela que tira nosso melhor. Por que perder tempo se estamos todos condenados à morte?


Selecionei algumas passagens de uma peça que escrevi durante um tempo e que quero muito que seja encenada durante esta encarnação (exagerado isso?). É a história de um jovem escritor que, durante uma noite, visita a propriedade de uma aristocrata que aguarda a volta de seu filho. Eis as cenas... E, se por acaso, alguém do ramo, estiver interessado, é só me procurar (não custa sonhar...). Mas nunca se esqueçam de Adelaide.


TRECHO 1
"Não perdi minha vida por essa história. Ando muito vivo. E sou um escritor. Isso significa que minha vida é boa demais porque me sinto dono de uma graça, uma dádiva dos deuses, talvez. Mas confesso também que não devo ter agido como a melhor das pessoas. Um homem que precisa se aproveitar dos outros para criar as próprias histórias pode ser considerado uma alma boa? A mulher que vão conhecer daqui a pouco é única. Não existem outras por aí. É só uma história que eu vivi."


TRECHO 2
ADELAIDE: Por que você nunca ri ao meu lado, Bernadete? Não está feliz?
BERNADETE: Estou sim. É só o meu jeito mesmo, senhora. Você me conhece.
ADELAIDE: Você sempre passou tanto tempo com os seus livros. Sorte sua que o papai te deixou ir pra escola. Se não você seria só mais uma dessas empregadas burras da fazenda, aquelas caipiras. Eu não imaginava que mamãe fosse viver tantos anos mais que papai. Ele era tão forte. Já mamãe era cega. Cega e velha... Você já passou o meu vestido? Aquele, o vermelho?
BERNADETE: Sim, ele está pronto.


TRECHO 3
PETER: Essa noite foi tão estranha que eu não recordo o que de fato aconteceu. Ou o que sonhei. Bem... Eu sonhei que ela tinha me dado um tiro. Eu estava me vestindo. E quando me virei, Adelaide apontava um revólver na minha direção. Foi aqui ao lado da barriga. Ela me deixou agonizando.
FERNANDO: Não. Isso nunca aconteceria, meu caro. Ela tinha uma mira péssima. Sabia fazer outras coisas terríveis, mas com armas, não. Deve ter sido o trauma de ver o pai morrer baleado na frente dela.
PETER: O que eu fiz? O que a foi que a gente fez?
FERNANDO: Não fizemos nada, Peter. Não foi necessário.

domingo, 6 de setembro de 2015

Seu reflexo já foi visto?



"É como se a gente precisasse de provas de que a gente existe. Se eu não sou a prova pra mim mesmo de que eu existo, eu preciso de provas... Como se o outro sabendo, eu realmente fiz" (Teresa Pinheiro)


Existe um mundo repleto de pessoas buscando seu lugar ao Sol... E neste mesmo lugar há os padrões que se repetem e tendem a ser seguidos desde a infância, desde o estereótipo da menina cheia de enfeites e do menino tendo que gostar de futebol até o do adulto de sucesso, aquele sujeito que troca tudo a cada nova coleção. Isso me leva a crer que forja-se a criação de uma personalidade imitadora e que, por sua vez, infelizmente, reverbera para outros campos da vida. Tantas pessoas que fingem gostar de certas coisas, exibem-se junto a grupos populares em seu meio e falam de alguns assuntos só para parecer mais legal ou "cult". Uma busca incessante do sujeito pelo reconhecimento e a admiração, querendo provar para si que realmente é bom.
Hoje fala-se demais nessa geração "selfie", que posta em suas redes sociais coisas das mais variadas, seja o prato de comida, uma foto no banheiro ou todos os passos que dá fora de casa. Mas, obviamente, a tendência copiadora e exibicionista do ser humano existe há sei lá quanto tempo, ficando muito claro, imagino, a partir do século 20, graças ao alcance das massas por meio do cinema e da televisão, lançando tantas modas quanto fossem possíveis por meio de penteados, sapatos, bordões, hábitos, bebidas e tudo que pudesse dar lucro.
A minha geração entrou nessa de redes sociais há 10 anos, por meio do finado Orkut, enveredando em seguida pelo Facebook . E vieram uma porção de aplicativos de fotos, paqueras, escapismos... Hoje podemos transformar qualquer imagem tirada por acaso em uma postagem cheia de "hashtags", legendas bizarras e interpretações um tanto diferentes das intenções originais. E pensar que até o começo dos anos 2000 ainda íamos a uma loja comprar o filme (12, 24 ou 36 poses...), tínhamos que escolher os melhores ângulos para a hora do flash e torcer para que nenhuma foto queimasse. Agora, nada disso! Tire 100 selfies em seu quarto, faça uma triagem, veja as cinco melhores e aí sim use uma para para cada uma de suas redes sociais. Depois é só esperar as curtidas e receber aqueles elogios de "lindo" e você, todo orgulhoso, finge-se de humilde e diz "Que nada, são seus olhos".
Já defendi aqui numa postagem recente que acho melhor termos excesso de informação do que falta, mas o bom senso e um pouco de autocrítica fazem bem na hora de escolher o que escrever e compartilhar. Muitos têm voz, mas o silêncio às vezes tem mais valor a longo prazo.
A frase com a qual abri o texto está na palestra abaixo, "Narcisismo e depressão", proferida pela psicanalista Teresa Pinheiro, que fala de forma brilhante sobre o tema. O programa "Café Filosófico" é exibido pela TV Cultura nas noites de domingo e, para nossa alegria, vários de seus vídeos estão disponíveis na internet.




terça-feira, 1 de setembro de 2015

Desaparecidos no universo, perdidos neste mundo?



"Um filósofo é um homem que vive, sente, escuta, suspeita, espera e sonha sempre com coisas extraordinárias, que parece colher as próprias ideias de fora, do alto e debaixo, como uma espécie de acontecimentos apenas a ele reservados e que chegam até ele como raios, e talvez, ele mesmo seja um furacão, prenhe de raios, um homem fatal, em torno do qual se ouve incessantemente o ruído sinistro do trovão.
Um filósofo, infelizmente, é por vezes um ser que foge de si mesmo, que freqüentemente tem medo de si, mas que é muito curioso, para deixar de voltar, sempre, para si mesmo." (Friedrich Nietzsche - "Além do Bem e do Mal")

Seres tão minúsculos na vastidão do cosmos. Um planeta gigante, mas é tudo tão pequeno na verdade. Somos muita complexidade num só corpo e, ao mesmo tempo, tão pouco. Achamos as formigas pequenas, as gotas do orvalho pela manhã, o filhote de passarinho no ninho. Sem contar as coisas invisíveis a olho nu... O silêncio e os sons naturais podem ser tão fascinantes para relaxar uns quanto a agitação é intrínseca à vida de outros. Contrastes do campo com a cidade, as trilhas da floresta versus as agitações da "night", as buzinas e a cachoeira, engravatados e pés descalços. Quem nunca teve a sensação de que este nosso mundo parece comportar vários dentro de um só? Certas vezes pode parecer até sonho. Aconteceu ou não tal coisa? Eu fui àquele lugar uma vez ou simplesmente imaginei? A diversidade de pessoas e cenários é fascinante e assustadora ao mesmo tempo.
Acredito eu que por isso existam fugas das mais diversas formas... Pode ser uma refúgio na religião, na intelectualidade filosófica e literária (coincidência ou não...), na arte, nas festas constantes, num casamento, uma penca de filhos, os vícios, a loucura... Nossa! A gente não aguenta viver numa situação que não traga algum conforto, o próprio corpo dá sinais, até mesmo para os menos exigentes.
Como o ser humano é um bicho doido que tenta atingir alguma meta na vida para, depois de alcançá-la, começar a se sentir simplesmente vazio! Talvez tenha sido fácil demais. Ou não, apenas não correspondeu às expectativas. E há os que simplesmente desistem, cortam o fio da vida para, talvez, alcançar a transcendência, viver em um lugar supostamente melhor.
Divagações excessivas à parte neste meu momento um tanto introspectivo e apreensivo quanto ao meu futuro e o da Terra, deixo abaixo o trailer deste belo documentário - "Koyaanisqatsi - Uma Vida Fora de Equilíbrio" -, que, apropriadamente, nos coloca como observadores de nosso próprio planeta, fazendo parecer que nos esquecemos de que aqui estamos, talvez perdidos em nossas rotinas, inconscientes da dimensão deste lugar e numa competição cotidiana com nossos vizinhos humanos, buscando atenção, sucesso, amor... e o que mais nos convier.
Blá-blá-blá meio doido acabando, o que acho bom mesmo, honestamente, é esquecer tudo de vez em quando. Buscar demais pode nos deixar mais perdidos ainda nesta vida finita. Prioridades feitas, fiquem com o vídeo ou vão direto para o documentário se o encontrarem.



sábado, 29 de agosto de 2015

100 anos de Ingrid Bergman



Quando iniciei este pequeno blog, quatro anos atrás, minha intenção era postar apenas textos originais e fugir das resenhas de livros e filmes e perfis sobre pessoas específicas, já que hoje muitos se dedicam a fazer isso (e muito bem) em outros blogs e no Youtube. 
Porém, hoje preciso abrir uma exceção, dada a oportunidade única de homenagear uma das atrizes que mais admiro, saída deste mundo alguns anos antes de eu nascer.
Ingrid Bergman nasceu há exatos 100 anos e partiu há exatos 33. Sueca, beleza natural, carisma, versatilidade em gêneros e idiomas, foi daquelas profissionais com que todos os grandes diretores e atores gostavam ou gostariam de trabalhar, aquela na qual um aprendiz de escritor pensa quando escreve uma personagem feminina. Ela foi muito mais do que a atriz premiada e estrela do clássico "Casablanca". Era uma fascinada pela aventura, a mulher independente de uma época um tanto conservadora, mas que não abria mão de proteger sua vida pessoal das lentes dos fotógrafos loucos por qualquer flagra.
Das aulas na Real Escola de Arte Dramática de Estocolmo e seus primeiros filmes na Suécia natal não demorou muito para que Hollywood se interessasse por ela, onde o estrelato chegou rápido nos anos 40. Porém, sua imagem de mãe e esposa "ideal" foi considerada abalada pelos puritanos americanos quando atriz partiu para a Itália para trabalhar e viver um romance com o cineasta Roberto Rossellini, nome maior do movimento neorrealista e completamente avesso ao estilo de filmagem hollywoodiano. Desfeita a união que durou poucos anos e alguns filmes, ela estava de volta à América e reconquistou as plateias para nunca mais ser esquecida.
Ao longo de seus muitos anos na ativa, Ingrid teve, como poucos artistas tiveram, a chance de brilhar em filmes dirigidos por Hitchcock, Jean Renoir e Anatole Litvak, estrelou peças de grandes dramaturgos (Eugene O'Neil, Ibsen, Turgueniev) e seguiu em grande estilo até seus últimos papéis: mesmo lutando contra o câncer, trabalhou de forma intensa com o conterrâneo Ingmar Bergman no belo "Sonata de Outono" e viveu a icônica Golda Meir na minissérie homônima.
Enfim, poderia sugerir vários outros títulos que, felizmente, são facilmente encontrados no Brasil. E para os que pouco conhecem a mulher homenageada, o vídeo a seguir resume um pouco a sua extraordinária carreira.



terça-feira, 25 de agosto de 2015

"O Silêncio", uma história sobre medo, passado e presente, escolhas e consequências



Com o processo em andamento, mais uma passagem enigmática da história ocorrida alguns anos atrás na Rua George Windsor, em Nova York. Nada é o que parece, ainda mais na rua em que "nada acontecia".

"Horas depois, mais precisamente por volta das 11, era uma noite abafada, mas úmida, um sereno insistente que deixava o asfalto brilhoso e os arbustos dos jardins com as folhas mais verdes e nítidas. Não conseguindo dormir, a Sra. Davis desceu à cozinha para preparar um chá de camomila. Sentou-se ao lado da mesa, abanando-se com a primeira revista que encontrou. As cortinas de toda a casa cobriam completamente as janelas, de modo a evitar a visão assustadora de um sujeito invasor. Nunca passara por qualquer situação do gênero em sua vida, mas os filmes de mistério que adorava faziam com que não deixasse nada exposto a olhares externos, sobretudo na situação de uma idosa solitária.
Anne já subia a escada quando o som de um carro estacionando chamou sua atenção. Apressou os passos para espiar na janela de seu quarto. Discretamente posicionada no escuro, com parte da janela aberta, a senhora observou o veículo, um carro comprido, um modelo antigo que ela não podia reconhecer, parado com as luzes desligadas em frente à casa dos Hellyors. Um homem alto e troncudo, calça comprida e casaco escuro, saltou do lado do carona e caminhou a passos rápidos em direção ao fundo da casa."

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Vamos olhar pra frente! Democraticamente, é claro




Estamos vivendo um momento único não só na história do Brasil, mas do mundo também. Um momento em que todos os erros e crimes cometidos por quem quer que seja ficam visíveis e cada vez mais sujeitos ao julgamento público. E nosso Brasil, politicamente falando, tem andado no centro desses julgamentos, desde junho de 2013, quando milhões de pessoas saíram às ruas para protestar contra todos os excessos e casos de corrupção praticados por aqueles que estão no poder, nas esferas municipal, estadual e federal.
Hoje, o problema não se relaciona à ameaça comunista como tanto se propagou na época do terrível golde de 64, ou a ditadores fascistas europeus, caça às bruxas que destruía carreiras nos Estados Unidos em meados do século 20 ou até mesmo uma gigante ameaça nuclear de décadas atrás. Vivemos a época em que todos têm voz, mas infelizmente ainda percebemos o controle de uma certa dominância financeira, que sobrepõe valores aos mais desinformados e faz com que muitos saiam por aí repetindo e escrevendo frases em cartazes que pouco sabem explicar.
Não defendo nosso governo atual, assim como não defendo qualquer atitude autoritária ou desonesta, mas acredito que precisamos refletir mais sobre os caminhos que queremos para o Brasil nos próximos anos e décadas. Voto obrigatório, fim das reeleições, melhor forma de financiamento de campanhas... Já se falou tanto na tal reforma política, mas o que se viu até agora não foi nada de concreto. Fica um jogo de troca de acusações, cada um se faz de vítima e colocando o outro como algoz. Um acusa e logo é acusado, escondendo-se ou tentando em vão se explicar. Não há união para o país como um todo evoluir. Luta intensa pelos próprios interesses, é o que transparece ao grande público desacreditado da política.
Mas nem tudo são rosas mortas. Temos visto exemplos bem-sucedidos de populares que se unem e pressionam vereadores a reduzirem seus salários, grupos que se mobilizam pela internet para lutar por causas importantes e o pensamento político, entrando, direta e indiretamente, na rotina das novas gerações. Isso sim é democracia. Não quero mais ver discursos descartáveis de ódio e ações radicais imaturas, mas liberdade, mobilização e a sensação de que somos um país, não uma terra de castas intocáveis. 


segunda-feira, 20 de julho de 2015

Afinal, como anda o nosso mundo?



Esta semana, conversando, com uma amiga, esbarramos na questão "o mundo está piorando?". Discussão que poderia cair facilmente em moralismos e clichês como aumento da violência, a queda da instituição família, a promiscuidade sexual... Porém, eu comecei a levantar uma série de argumentos que me levam a crer justamente o contrário, tão simplesmente porque os problemas que existem hoje sempre existiram e estão simplesmente ficando mais explícitos.
O que evidencia mais isso, na minha opinião, é o que a internet tem feito por nós. Mesmo que muitas vezes nos queixemos desse excesso de informações, atualizações insistentes de status, selfies intermináveis, fofocas de famosos pipocando toda hora..., o que deve prevalecer e servir de estímulo é o lado bom desse meio de comunicação. É duro, tantas vezes, encararmos notícias irritantes de corrupção, dados tristes sobre violência, maus tratos a crianças e outras espécies animais, mas uma sociedade consciente pode fazer a diferença. Não simplesmente ficar cego e ignorar o problema.
Por coincidência, também nesses últimos dias, acabo de adquirir o livro "Holocausto Brasileiro", da jornalista Daniela Arbex, a respeito de um manicômio na cidade de Barbacena, Minas Gerais, onde, no século 20, milhares de pessoas morreram nas piores condições de tratamento sem qualquer diagnóstico preciso de doença mental - eram, em sua maioria, pessoas excluídas por falta de adequação aos padrões sociais da época. Diante desse passado, como acreditar que estamos piorando?
O fim da escravidão dos negros, a independência das mulheres, a preservação da natureza, direitos iguais para casais homoafetivos, o diagnóstico e acompanhamento cada vez melhor dos problemas de saúde... Não sou utópico e vivo num mundo que me dá sim muita dor de cabeça, mas acredito que hoje estamos caminhando para uma era de nível de conhecimento, uma espécie de unificação intelectual e tecnológica que acontece em velocidades muito disformes para cada humano, porém acontece. É duro ser humano e conviver com outros humanos, ainda mais os muito diferentes, mas nada melhor do que começar pelo autoconhecimento.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A delicadeza do envelhecimento



Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. (...) Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. (conto "Feliz Aniversário", do livro "Laços de Família", de Clarice Lispector)



Dia desses, assisti a um filme chamado "As Baleias de Agosto" (1987), dirigido pelo britânico Lindsay Anderson e estrelado por duas lendárias atrizes: Lilian Gish (1893-1993) e Bette Davis (1908-1989). Além do clima poética que permeia a obra e seu fantástico elenco de veteranos, o que me levou a escrever este breve texto foi justamente o tema muitas vezes deixado de lado: lidar com o envelhecimento e a proximidade da morte.
Em uma sociedade onde o culto à beleza e o prolongamento da juventude parecem máximas, falar de velhice muitas vezes reduz-se ao universo médico e a pessoas ligadas à essa faixa etária. O valor da experiência, a força de pessoas que passaram por décadas, guerras mundiais, novas tecnologias... fica em segundo plano. Pessoas que resistiram a todo tipo de crise e dor, mas que, infelizmente acabam relegadas ao plano da fraqueza, o quarto escuro e fechado nos fundos, sem autonomia e poder de decisão.
Com meus 24 anos, tendo avós na faixa dos 80 e vendo constantemente matérias sobre o aumento da expectativa de vida, fico, é claro, fascinado pelo tema. Não à toa já escrevi uma porção de textos com personagens idosos (alguns neste blog). Às vezes, a identificação é tanta que acho que tenho alma de idoso. Mas aí já é outra história...
O fato é que todos dizem que preferem morrer a ficar um ser humano debilitado e dependente, mas, como bem sabemos, só não fica velho quem morre novo. E a não ser que você tenha os genes e o dinheiro de Jane Fonda, os anos vão passar sim e as rugas irão ficar notáveis no seu rosto. É a vida. E a morte.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O estranho prazer de escrever e uma história resendense


É engraçado esse negócio de escrever continuamente em um blog, além dos projetos mais longos (leia-se ambiciosos) para tentativas de publicação, encenação etc. Mas é inegavelmente uma bela e divertida jornada que vai desde o surgimento da primeira ideia com potencial até o último ponto final em que se nota efetivamente a transformação do pouco em algo maior, com certa lógica.
Aqui neste espaço, além de vários contos e textos de opinião já postados, já publiquei também trechos de um projeto literário em desenvolvimento (em breve mais). Desta vez, gostaria de dar uma prévia de um novo projeto, talvez um pouco mais pretensioso. Seria como o teaser de um filme em produção.
É um roteiro, narrativa passada quase que inteiramente em minha Resende, cidade fluminense localizada na divisa entre três estados e dona de uma longa história (pra quem não conhece, ela fez parte do ciclo do café no século XIX). A cena destacada mostra a conversa entre dois grandes amigos, nos seus vinte e poucos anos de idade, sentados à frente de um casarão em 1944. Que saia do papel para as telas! Acompanhe:


ALBERTO: E então, Peter? O que achou dos tipos que frequentam minha casa? Já encontrou personagens?
PETER: Não concordo com metade do que dizem, mas não posso negar que eles tenham personalidade.
ALBERTO: Personalidades hipócritas, você quer dizer? Chauvinistas... E mamãe sempre falando aquilo, da mesma forma. Não perde aquela pose.
PETER: Aquilo o quê?
ALBERTO: Coragem. Sempre discursando sobre coragem. Os fortes em cima dos fracos. Vingança. Parece que o mundo foi feito para servir os donos do poder. E aquele patriotismo besta? Mandam um miserável pra guerra e quando o corpo dele é explodido, o governo informa pra família que ele deu a vida pelo país. No lugar do filho fica uma medalha fria pendurada na parede.
PETER: Você sabe que compartilho da mesma opinião, mas, Alberto, você mesmo havia comentado uma vez que queria se inscrever.
ALBERTO: Foi coisa de momento, Peter. Você me conhece muito bem. Hoje eu não iria mais. Pra quê? Só pra impressionar mamãe? Esse é o drama de filho único. Não ter com quem dividir s expectativas de Lady MacBeth. Não quero posar de homem corajoso, orgulho da família... Isso não é garantia de nada.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Cruzei a rua e encontrei comigo mesmo?




"Sou um homem insignificante, como o senhor não ignora. Para sorte minha, porém, não lamento a minha insignificância. Ao contrário. Muito ao contrário, até me sinto orgulhoso por não ser um indivíduo notável, mas uma criatura medíocre... Só ponho máscara no rosto quando vou a algum baile à fantasia; não sei andar todos os dias pelo mundo com uma máscara pregada na cara".

As palavras são do romance "O Duplo" (1846), onde o russo Dostoiévski explorou o tema do duplo humano, o que foi retomado anos depois por seu conterrâneo e fã-crítico Vladimir Navokov em "Desespero" (1965) – a figura idêntica, ou assim apresentada, de alguém que podemos encontrar na rua por acaso e que se torna uma espécie de obsessão para os personagens principais de ambas as narrativas. O cinema e a televisão já brincaram muito com esse tema através de gêmeos – os estereótipos do bom e do mau – que trocam de lugar visando algum benefício.
Mas será que estaríamos preparados para encontrar com alguém cujos traços físicos dessem um nó em nossa mente de tão semelhantes com os que vemos no reflexo do espelho diariamente? Alucinação ou realidade? A gente iria fugir, perseguir, investigar a vida, ficar com inveja do que aquela pessoa faz e nós talvez não sejamos capazes? Carisma, beleza, dinheiro... O velho dilema de querer ser e ter alguma coisa a mais dentre nossas qualidades. E, hipoteticamente, se a situação fosse pior ainda: uma pessoa idosa vendo a si própria na figura da juventude? Refazer a vida, aí já renderia outra discussão, ainda mais delirante.
Que loucura! Quando mente e corpo físico entram em guerra é difícil prever qual vai ser o final. Somos todos seres sociais, influenciados pelo meio desde que nascemos e tendo que passar por adaptações até o final da vida. Somos animais, mas muitas vezes nos esquecemos disso e fingimos pretensiosamente que somos seres superiores aos demais. Sem exageros, pois como diria, séculos atrás, Calderón de La Barca (vou fazer citação de novo), "toda a vida é sonho". Enquanto isso, talvez seu duplo esteja passeando por algum lugar deste mundão.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Dorival Leitão e a Morte da Arte



Morreu sem a identidade. Alexander Amadeus Fausto Picasso. O nome de batismo fora esquecido pelo próprio no alto (antes de cair) dos seus quase 100 anos. “O sofrimento foi mitigado”, diziam parentes e amigos vindos de todos os cantos do globo. Alegavam querer matar a saudade do velho artista antes de sua despedida definitiva para o mundo do além, ou só debaixo da terra mesmo.
Mas o que chamou realmente a atenção foi um bilhetinho, letras muito bem desenhadas, papel de pão no bolso de seu velho e desbotado casaco preto. “A arte está morta”. Palavras simples, mas que repercutiram com profundidade nos dias seguintes ao seu falecimento. De seu apartamento de três andares, acesso restrito a convidados exclusivos, perto do Catete, onde suas famosas obras de todos os tipos foram produzidas antes de girar por este mundo, o burburinho tomou dimensões épicas. Isso ofuscou ainda mais o pequeno revólver de prata colocado em sua mão direita. “Assassinato ou suicídio?”, poucos se importavam com esse detalhe. Todos queriam saber mesmo o que era essa tal morte da arte.
Para a ocasião não haveria repórter mais experiente para preparar uma pauta à altura, das mais criativas, do que o Seu Dorival Leitão, o septuagenário cronista notável de seu tempo, direto do “Manchetes Diárias do Tiros no Rio”.
Elaborou sua estratégia. A missão começou. Precisava ouvir alguns artistas de gabarito, cada um notável em seu seguimento para falar do tal assassinato. Da arte, para reforçar.

1-    O PINTOR
Cheguei ao ateliê de Pierre S. Melô. Um retângulo vermelho no meio da Mata Atlântica. Repousei o desgastado chapéu marrom e a nova bengala ao lado de um quadro negro. Estava cheio de rabiscos, parecendo sala de escola pública. O ambiente era muito espaçoso, com quadros pra todo lado e mais folhas ainda, espalhadas. Pingos de tinta em sua roupa e uns óculos que mal deixavam à mostra os famosos olhos grandes de Seu Pierre.
_ Olá, Seu Pierre! Lembra-se de mim?
_ Não.
_ Estive entrevistando o senhor uma vez. Quando teve uma modelo assassinada aqui no seu ateliê. Foi o senhor?
_ Não.
_ Conheceu Alexander Amadeus Fausto Picasso, o artista morto esta semana?
_ Não.
_ Mas todos o conheciam! Ele deixou um bilhete. Falando que a arte está morta... O senhor acredita?
_ Não.
_ Por que não? O que a arte é pra você?
_ Nada.
_ Nada?
_ Nada e tudo. Arte é nada.
_ Você sempre foi um artista?
_ É um dom dos deuses. Pouco como eu o têm.
_ Sim...
_ Não.
_ O que é que está pintando nessa tela aí?
_ É o nada.
_ Pois é. Isso eu vejo. Não estou entendendo nada. Ou seria qualquer coisa?
_ Obrigado.
_ Não há de quê.
_ Com licença. Preciso pintar a vida.
_ E a morte?
_ É o nada.
E eu saí de lá sem saber qualquer coisa sobre a morte da arte. Precisava de uma segunda opinião.

2-    A ATRIZ
Em seguida, um pouco mais esperançoso, um tanto otimista pra falar a verdade, fui ao encontro de Mariângela Zulu, conhecida como a “diva dos palcos”. Volta e meia também dava as caras na televisão. Ela sempre declarava que desejava o que lhe desse mais prazer artístico. Era isso que eu precisava mesmo. Sentada em seu camarim, com um creme verde na cara e trocando olhares consigo mesmo no espelho gigante que ia até o teto, fui recebido desse jeito. A tal da diva fazia um sinal com a mão pra mostrar que estava com pressa.
            _ Como você enxerga a arte, Miss Mariângela?
            _ Por que “miss”?
            _ Achava que gostasse de um título.
            _ Sou atriz. Estudei pra isso.
            _ Não foi isso que eu perguntei...
            _ Então, faça logo! O que quer?
_ Nem diga isso, senhora. As coisas na minha idade não têm muito jeito mesmo.
_ Senhora?
_ Sim. É o que você é, não?
_ Você?
_ Sua pessoa.
_ Prefiro assim. Pessoa, persona, máscara. A arte de atuar...
_ Arte, pra sua pessoa, o que é?
_ Um talento, a representação, o poder do olhar, da voz, os movimentos de meu corpo. Não há algo maior do que o teatro.
_ E a televisão?
_ Deus me livre! Só faço aqui quando o dinheiro compensa. Chega aqui... Cá pra nós, alguém com cérebro vê aquilo?
_ Eu vejo.
_ Inteligência é um conceito muito subjetivo.
_ E a arte?
_ Arte o quê?
_ A arte de Alexander Amadeus Fausto Picasso.
_ Como ele está?
_ Está morto.
_ Sério? Quantos anos ele tinha? 200?
_ Ele disse que a arte está morta.
_ Só se for a dele. A minha é imortal. Sobrevive comigo.
Levantou-se com o olhar arrogante, que me encarou pela primeira vez. Fechou-se em uma porta. Esperei por muitos minutos, mas ela não voltou. Devia estar repousando sua arte.

3-    O ESCRITOR
Trabalhando em seu novo livro – uma biografia não-autorizada de si mesmo – Emílio Homem Jesus Maria Cacá – foi outro que me deixou visitá-lo. Sentado debaixo de mangueira na chácara, o banco era feito de uma porção de livros de capa dura e folhas amareladas.
_ Pois não, senhor?
_ Sim, sou eu. O repórter Dorival Leitão.
_ Não! Eu estava lendo em voz alta a fala de meu personagem.
_ Certo... Seu Emílio?
_ Como você anda, meu caro?
_ Eu ou o seu personagem?
_ Você, meu caro! Não faça perder minha paciência, Seu Leitão!
_ Estou muito bem. E...
_ Era a cena em que eu acabei brigando com meu professor do internato. Eu entendia mais de literatura do que ele. Um tirano velho!
_ Sim. E...
_ Desgraçado!
_ O que eu...?
_ Aquele filho da puta me expulsou do colégio!
_ Não diga?!
_ Não mesmo! Levei uma cintadas terríveis de papai. Tenho marcas até hoje na minha barriga.
_ Mas não dizem que a dor inspira a arte?
_ Arte, arte, arte... O que é essa maldita arte?
_ Essa era a minha pergunta para o senhor...
_ Artistas são umas criaturas de merda! Excrementos supervalorizados. Qualquer lixo hoje vira arte.
_ E seu novo livro?
_ O quê? Estás a insinuar que meu novo livro serás um lixo?
_ Certamente que não, Seu Emílio. Mas por que falou com sotaque português na última fala?
_ Não sei. Não interessa! Foram sujeitinhos como você que acabaram com meu último livro. “50 Anos de Sono”... Era tudo que se podia esperar: tinha drama, ficção científica, suspense, crise existencial, sexo, muitas fotos coloridas... Vocês, jornalistas medíocres, sempre acabam com a nossa graça!
_ Mas eu nem li seu livro!
_ Esse é o problema. Vocês não sabem nada do que a gente faz e fingem que viram tudo. Sinto falta dos velhos tempos. Quando não havia essa porcaria de internet. E essa gentalha pegava um livro pra ler em vez de ficar bisbilhotando a vida dos outros. O mundo era mais certo. Era melhor. Bons tempos...
Eu saí, mas o senhor ali continuava a divagar para a árvore, pobre solitária que não podia se mover. Fiquei sabendo que ele foi internado num manicômio alguns dias depois enquanto papeava com um poste. Coitado, incompreendido. Um tal de complexo de perseguição. Quanto a mim, nada ainda da morte de arte.

4-    A CANTORA
Indiferente à fila de fãs histéricos, em pé em um imenso palco, diante de uma plateia vazia. Arlete Azaleia ensaiava olhando para o teto ou para o chão. Sua voz ia da mais fina ao mais grave que se podia imaginar e eu chegava a me assustar. Meu Deus! Aquilo era arte! Ali encontraria minha resposta, imaginei. Pareciam duas pessoas brigando ali dentro pelo mesmo corpo magro da moça. Era conhecida como a “dona da voz”. Pra mim, era a esperança pra elucidar o mistério.
_ Olá.
_ Pois não?
_ Sou Dorival Leitão.
_ Sim, sim... É aquele... O repórter das notícias sangrentas.
_ Ele mesmo. A seu dispor.
_ Dorival. Parece nome de remédio. Quem deu?
_ Deu o quê?
_ Esse nome de remédio, senhor!
_ Inventaram na minha terra. Coisa de Resende.
_ Resende... Já tomei um remédio com um nome parecido.
_ Era pra voz?
_ Não. Para os nervos mesmo. Sempre fico muito agitada quando vou me apresentar.
_ Mesmo tendo uma voz dessas?
_ Que tem minha voz?
_ É maravilhosa! Parecem duas criaturas numa só pessoa.
_ 2 em 1... Adoro promoções quando vou à farmácia. Deixo minhas prateleiras cheias pra não correr o risco de ficar em falta. Mas ninguém nunca me disse uma coisa dessas sobre minha voz.
_ Pois parece sim. Te garanto!
_ Pegue aquela caixa de remédios ali pra mim, Senhor Dorival. E a garrafa de água também. É egípcia. Faz milagres com as cordas vocais.
_ Já foi ao Nilo?
_ Não, não... Mando trazer. Você já tomou esse comprimido?
_ Que é?
_ Molevotril. Para os nervos. Dá uma animada dos diabos.
_ Hum... Meus remédios são pra aquelas coisas normais de velho mesmo. Nada de diferente. Puxei a saúde de ferro da família.
_ Eu tomo todos que puder. Fico apavorada com doenças.
_ Certo... Que tal falarmos sobre a arte, senhorita Arlete?
_ Minha voz é a arte. Quer mais?
_ Alexander Amadeus Fausto Picasso está morto.
_ Quem? Ah, sim... Aquele. Acho que nunca o vi em um de meus shows.
_ Ele morreu dizendo que a arte está morta.
_ No Brasil? É claro que sim. Ou melhor, em qualquer lugar. Ninguém canta mais. No Brasil só restam duas: Ângela Maria e eu. Eu e Ângela Maria. A terceira já está morta faz anos.
_ Sua voz faz discursos como um anjo.
_ Mimimimimimimimimimimimi... aaaaaaaaaaaaaa... eeeeeeeeeeeeeeeeee... iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... Com licença, é só o aquecimento, Senhor Dorival, de Resende.
_ Sim. Sempre quente. Esse aquecimento global está acabando com tudo.
_ Pode fechar a porta quando a sair. Tem uma fresta deixando as correntes de ar entrarem. Isso acaba com minha voz.
A “dona da voz” voltou ao ensaio e nada mais falou. Arte, arte, arte. E o corpo do Seu Alexander Amadeus Fausto Picasso foi enterrado numa cerimônia cheia de gente com roupas esquisitas e músicas que não faziam sentido algum. Devia ser por isso que ele escreveu o bilhete. O papel de pão foi colocado na lápide. “A arte está morta”. Que arte é essa até hoje eu não sei.


(Leia mais histórias do grande repórter Dorival Leitão aqui e aqui...)