terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O casarão escondido na montanha do vale




Era uma tarde ensolarada, mas destas ameaçada pelo sono. O filme estava parado. O corpo e a mente lutavam para ver o que prevalecia naquele momento. Por fim o sono foi aquele que triunfou. Sou avesso a diários, mas os tolero quando a necessidade de escrever sentimentos ultrapassa qualquer um daqueles pensamentos excessivos, idiossincráticos. Palavra pretensiosa esta. Vem um discurso típico talvez de um existencialista, jovem adulto, se é esta a expressão correta, um que não tem mais ideia do que o futuro pode fazer por ele ou ele pelo futuro. Pensamentos talvez depressivos, que negócio chato, dominando sua mente e reduzindo o ser a um saudosista de épocas e emoções não vividas sabe-se lá por que, assustando-me de tal forma que não sei mais se é uma rua sem saída ou se as possibilidades estão escondidas por detrás das árvores e velhos portões. Buscava apenas uma sensação frágil, tênue, volátil. Não sei definir em uma algo de tamanha complexidade. Parem de me torturar com perguntas para explicações que não sei dar.
A verdade é que eu não sei como havia lá ido parar. A primeira coisa que me ocorre é a lembrança de um ambiente campestre, imagine desses típicos. As árvores nativas, muito verdes da Mata Atlântica, os pastos que deixam um vazio na paisagem, salpicado em alguns pontos pelas cabeças de rebanho e outros animais, livres, que seguem suas vidas rotineiras. O que não havia ao meu alcance eram pessoas, qualquer sinal que fosse, a certeza de uma solidão, ao menos momentânea. Estava ali parado naquela estrada de terra clara, pedregulhos, buracos aqui e acolá.. Era uma ladeira. Vi o vale lá embaixo e, mais adiante, as montanhas azuis distantes.
Eu, corrido para a montanha, um impostor da minha vida, era como eu me sentia. O rio, no meu vale, serpenteava lá embaixo, misterioso e discreto, suas águas serenas seguindo para um mar que muitos quilômetros depois teria que enfrentar. Eu pedalei, fugia de tudo, todas as minhas obrigações sociais, humanas, profissionais. Não queria mais nada. Minha bicicleta e minhas roupas eram o pouco que me conectava ao passado do qual procurava me afastar ao atravessar os atalhos, eucaliptos e pássaros diversos, andorinhas, abutres, bem-te-vis, alguns cantavam e cruzavam os céus com sua liberdade invejável. Deixava meus restos pelo caminho. O silêncio, como aquilo me fazia bem. Não queria ver qualquer humano. Talvez apenas um, mas ele não vivia mais. Só em minhas memórias, às vezes preferia me iludir. O suor dominava minha fronte nas muitas pedaladas e trechos caminhados, sustentados pelos meus pés magros.
Os anos nos separavam. O menino virou homem, perdeu a ingenuidade, ilusão, talvez ganhou mais força, um pouco de pé no chão, rapaz.  Era terra dura. As máquinas andaram mexendo com a superfície dos morros, mas o vale não. Continuava lá, belo, intocável. Ninguém vai tirar esse vale daí, eu repetia. Não queria perder a imagem jamais. Pra sempre dentro do meu filme.
O tempo já estava fechado, nuvens suaves encobriam o céu, mas isso não me abalou. Virando-me de costas, constatei que havia, ali à frente, algo como a sede de uma velha fazenda. Um casarão atraente de paredes brancas, amareladas e marcadas pelas infiltrações do descaso. O portão era alto, grades metálicas enferrujadas, ao fim de uma ruela. Quantas árvores grandes cercavam aquela casa! Pareciam protegê-la, isolá-la das forças sufocantes que viessem de fora. O silêncio que eu sentia era tão forte quanto a sensação de ouvidos tapados. Acho que todos os pássaros e criaturas resolveram se calar por aqueles minutos.
E eu não queria me aproximar do portão comprido, marcado por seu grande leão de dentes ameaçadores ao centro, com o temor de ser visto por qualquer pessoa que ali se escondesse. Não podiam pensar que eu espionasse a casa, não, eu não o fazia. Estava apenas seduzido pela casa dos sonhos. Segui pela calçada de concreto envelhecido e fui ali pela lateral, contornando a casa que era das construções mais fascinantes. Todas aquelas janelas fechadas, eu imaginava olhos me espionando. Crianças curiosas, criadas prudentes, homens da segurança. Mas não havia sinal algum. O muro tinha, em cima, três segmentos de arame farpado, nada de câmeras que pudessem dar a ilusão da proteção à propriedade do meio do nada.  Conforme subia pela calçada, a rua ficava mais baixa e eu, tolamente, sentindo-se livre do perigo.
Já estava me aproximando de um portão menor, de madeira, fechado, talvez uma entrada de funcionários. Eles deviam ser mesmo uma família de posses, fartura, festas elegantes. Mas algumas vozes masculinas começaram a quebrar meu sossego, invadiram meu recanto. Tomado pelo medo de ser descoberto por quem quer que fosse e aos quais não saberia dizer uma só palavra como ali havia chegado, tratei logo de me esconder debaixo de um arbusto de folhas verdes e amarelas, mas havia espinhos e eu me machucava, não percebia, não me importava. Queria apenas não ser notado. Dois jovens pedalavam velozmente suas bicicletas, conversando empolgadamente, sorrisos no rosto, assunto que devia satisfazer muito bem os dois. Estavam tão ligados, os dentes arreganhados direcionados um ao outro. Eles desceram pela continuidade da estrada e sumiram do meu campo de visão. Respirei aliviado, levantando-me e passando as mãos pelos braços para tentar amenizar o incômodo deixado pelo esconderijo.
Passado o susto, coloquei o pé num buraco do muro e espiei parte da propriedade, os fundos. Quanto mato ali havia, uma bela piscina de azulejos azuis rachados, água suja acumulada, flores tristes que cresciam em meio às daninhas grosseiras. Rachaduras, madeiras podres, telhas caindo, era a decadência do lugar que visitara em alguma ocasião, mas eu não conseguia me recordar da maneira que fora.
O que eu queria era só estar na companhia de uma pessoa, dele, nós dois adentraríamos e o lugar seria transformado. Belo, colorido, vivo. Eu te espiaria pela vidraça e você, timidamente, iria me rechaçar, sem graça de ter te visto, ainda sem suas roupas. Você não pensava que eu sentia aquilo, mas sempre houve. Eu só esperava o seu sinal, meu querido. A casa velha dos meus sonhos iria se tornar sua também, mas com a mudança que eu tanto esperei. A mudança ao seu lado. Eu temia que você me notasse como eu sempre quis, mas gostaria que abrisse a porta e me convidasse para entrar. Que você sentisse o mesmo que eu. Não veria mais uma construção em declínio nem me esconderia dos passantes, a casa seria nossa e não teríamos mais vergonha de nosso sentimento. Não teríamos mais vergonha daquele lugar, tudo seria belo e reconfortante.
Minhas fantasias têm sido tão reais que temo estar enlouquecendo. Os sonhos que de tão claros parecem ter sido compartilhados contigo, aumentando minha culpa, mas também minha vontade de concretizar o toque, o beijo de verdade, o cheiro de sua pele. Você sabe ou não o que fizemos num daqueles cômodos do casarão distante? Pra mim foi de verdade. E você já deve ter percebido. Não estive lá sozinho. Eu precisava abrir o portão, reabrir o lugar das minhas memórias secretas. Elas estavam lá, escondidas, protegidas pelas paredes em ruínas. Ajude-me a salvá-las. Tenho medo de perder o velho casarão. Ou de nunca mais saber voltar lá.

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