terça-feira, 1 de março de 2016

O que fazer com tanta informação?


     As fontes de informação nos dias atuais multiplicam-se em uma velocidade intensa, conforme aparelhos com acesso à internet são cada dia mais acessíveis. Lemos, escrevemos, compramos, assistimos, conhecemos pessoas, pedimos a pizza e o táxi... Do bate-papo descompromissado com o amigo à criação de canais de vídeos que podem se tornar uma lucrativa fonte de renda para seus idealizadores. Inúmeras são as possibilidades desses recursos indispensáveis na vida que fica mais corrida, tanto para uma criança atarefada precocemente até a pessoa idosa que não perde tempo em aprender o que puder.
     Depois de tantos benefícios apresentados, podemos, então, entrar em um dilema do século 21: tanto conhecimento pode nos tornar indivíduos melhores e mais conscientes de seu planeta ou estaríamos mais para criaturas a caminho de ficar saturadas de tanta coisa? Corremos o risco de perder a concentração  e não deixarmos mais nosso cérebro em estado de relaxamento?



Para discutir o assunto, pude conversar e contar com a colaboração do filósofo, psicanalista e professor universitário Luiz Fernando Fontes-Teixeira (foto). Acompanhe a seguir.


L&I - Durante muitos momentos da História, o acesso a conhecimentos importantes era privilégio de grupos, como religiosos, filósofos e membros da elite, o que vem mudando consideravelmente desde o século 20. O acesso cada vez maior a informações sobre fatos em qualquer parte do globo em tempo real é um avanço significativo nesse sentido. Como você avalia isso do ponto de vista filosófico? Quais os impactos em nossa sociedade?
LFFT - Sua pergunta levanta dois tópicos muito importantes. O primeiro diz respeito ao direito de acesso à informação, à comunicação e ao conhecimento.
A democratização dos meios, com a popularização da internet e o advento das novas mídias, representa um avanço inestimável. Tanto aqueles que antes não possuíam acesso às fontes, quanto aqueles que as possuíam, mas tinham dificuldades de divulgar o conteúdo, podem agora desfrutar de uma ampla rede de compartilhamento, diálogo e mútua colaboração.
Entretanto, não basta apenas disponibilizar o acesso. É também necessário ensinar a ler as mais diversas mídias e absorver os múltiplos conteúdos. Informação não é conhecimento, assim como pouca distância não é proximidade. É imprescindível promover a passagem da recepção da informação para a construção do conhecimento. Esse é o motivo pelo qual observamos hoje a emergência de novas áreas do saber, como a Literacia Midiática, a Educação Midiática ou a Educomunicação, que apresentam propostas de interatividade, leitura crítica das mídias e produção colaborativa de conhecimento reflexivo.
Por esse motivo, somente após uma profunda reflexão a respeito da comunicação e seus meios que poderemos começar a mensurar os limites e alcances desta nova Era. Pessoalmente, acredito que estamos trilhando somente os primeiros passos para compreendermos os novos fenômenos do mundo digital.
Já o segundo tópico é um pouco mais complicado. Refere-se ao poder conferido aos que detêm maior conhecimento. Indo direto ao assunto: o que me parece estar em jogo aqui é a Ética enquanto postura fundamental. E por Ética não me refiro a um conjunto de normas ou preceitos morais de “certo” e “errado”, mas à capacidade de assumir a responsabilidade como um princípio superior.
Quem assume a posição de detentor de um determinado saber, precisa também assumir a responsabilidade por esse saber e por aqueles que não o possuem. Caso contrário, o resultado é inevitavelmente o monopólio do conhecimento, geralmente seguido de ocultação e manipulação de informações, bem como manipulação do próprio povo.


L&I - E no campo da psicologia, como tanta informação ao mesmo tempo num site de notícia, por exemplo, é processado pelo cérebro do indivíduo?
LFFT - O pouco que acompanho dos mais recentes estudos no campo da psicologia parece indicar que, de fato, o acúmulo excessivo de informações tende a transtornar o indivíduo. Psicólogos e neurocientistas gostam de nomear esse fenômeno como “sobrecarga de informação” ou “infotoxicação”. As implicações parecem ser as mais variadas.
Todavia, não podemos esquecer que a veiculação de tais informações está apenas disponível, isto é, à mão. Nós é que nos colocamos à disposição desse excesso e somente nós mesmos podemos interromper o fluxo. Cabe ao sujeito selecionar aquilo que lhe interessa, tomar a decisão e assumir a responsabilidade pelo conteúdo que consome.
A partir do ponto de vista da minha área de atuação, a psicanálise, posso me atrever a argumentar que se colocar à disposição de tantas informações expressa uma posição subjetiva. O desejo é sempre o desejo do outro. Quando se alcança algo desejado, sintomaticamente se passa a desejar outra coisa. O excesso de informação apenas responde à demanda e fomenta essa relação ambígua com o desejo.


L&I - Por conta disso, a ansiedade, como transtorno psíquico, é efetivamente um problema de saúde pública hoje ou se tem tornado alvo fácil da indústria farmacêutica? Estamos realmente nos tornando mais impacientes e preocupados demais em sermos bem vistos socialmente?
LFFT - A ansiedade é um sintoma que revela a dificuldade de lidar com as incertezas, com o inesperado, com aquilo que não podemos nem controlar, nem nomear. Trata-se de um dispositivo de defesa perante o desconhecido, o imprevisível. A ansiedade sempre se manifestou, com ou sem tecnologia. É um velho sintoma presente em uma nova realidade, onde as coisas estão apenas dispostas de maneira distinta. Ainda estamos aprendendo a lidar com essa nova disposição.
A indústria farmacêutica é outro problema. Ela avança com ferocidade, dia após dia, ano após ano. Não podemos, contudo, negar que devemos muito aos esforços empreendidos por essa indústria. Entretanto, assim como a questão da informação excessiva, os fármacos estão apenas disponíveis. Cabe ao sujeito optar pelo seu consumo ou não. Nesse ponto, retomamos também a primeira pergunta, aquela que relaciona o poder com o conhecimento. Os médicos devem ser responsáveis o suficiente pelo saber que possuem e administrarem os remédios certos, na medida certa – não permitindo que o lobby de grandes empresas direcione o tratamento de seus pacientes.
Agora, quanto à impaciência e à preocupação em sermos bem vistos socialmente, acredito que isso sempre ocorreu, assim como a ansiedade. O que muda é que tais fenômenos estão mais visíveis – o que pode ser bom, por um lado, e ruim, pelo outro. É uma questão de meio, não de fim.


L&I - As novas gerações que estão crescendo com as tecnologias sofrem ou sofrerão prejuízos que as anteriores não tiveram por conta do acesso ilimitado a fontes de conhecimento?
LFFT - Não é possível afirmar acuradamente se as novas gerações serão vítimas de prejuízos decorrentes do acesso “ilimitado” ao conhecimento. Qualquer um que afirme isso categoricamente cairá no engodo de uma predição vazia e sem fundamentos.
O que talvez seja possível supor é que a nova geração possui modos de fazer laço social ligeiramente distintos daqueles que outrora conhecíamos, o que exige uma nova perspectiva a respeito do sujeito. Ainda estamos construindo as bases para pensar essa nova perspectiva e talvez permaneçamos “em construção” por ainda muito tempo.
Seja como for, acredito que muito pouco das nossas expectativas em relação às novas gerações serão atendidas. Usamos uma lógica velha para compreender o novo. Uma guinada em nosso olhar se faz urgente se quisermos ensaiar uma resposta digna para essa pergunta.


L&I - Como você enxerga a situação de um indivíduo que descobre e vasculha perfis de tantas pessoas diferentes com o clique de um mouse ou toques de dedos ao celular? Problemas como autoestima baixa e sensação de solidão tendem a se agravar?
LFFT - Esse é outro ponto incalculável. Não podemos prever quais tipos de problemas advém da prática de vasculhar perfis de outras pessoas na internet. Cada caso é um caso. As redes sociais são apenas um novo e mais hábil veículo para um sintoma já muito antigo. Aquilo que agrava a sensação de solidão ou interfere na imagem de si mesmo possui origens que só o próprio sujeito pode investigar e analisar – geralmente, remontam a questões inconscientes anteriores ao uso da internet. As mídias sociais podem apenas deixar esses problemas mais visíveis.


L&I - Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (autor de uma série de livros publicados no Brasil como Tempos Líquidos e Vida para Consumo), vivemos uma espécie de período de ilusões. O virtual pode se sobrepor ao real, fazendo com que, por exemplo, ter uma grande quantidade de amigos numa rede social seja sinal de pertencimento a um grupo, podendo-se acrescentar ou retirar membros a qualquer momento. Que riscos você vê nisso?
LFFT - Bauman é uma das mentes mais afiadas, provocativas e ilustres da sociologia contemporânea. Suas teses dialogam com diversas áreas do conhecimento e suas pesquisas sempre analisam problemas pertinentes aos desdobramentos mais urgentes de nosso tempo. Todavia, acredito que ainda estamos muito longe de pensar com suficiente radicalidade o sentido de termos como “real” e “virtual”. Supor uma cisão entre ambos me parece ingênuo.
Talvez faça sentido para a minha geração e para as gerações anteriores pensar assim. Entretanto, os chamados “nativos digitais” não compreendem o “real” e o “virtual” como estruturas separadas. Ambos fazem parte de uma mesma realidade entrelaçada, que se implica mutuamente. Novamente, insisto, não podemos olhar para os novos fenômenos de hoje através das velhas lentes com as quais enxergávamos o mundo de ontem. Bauman abriu muitos caminhos. Chegou a hora de refletir seriamente sobre suas sugestões e apresentar algo novo, para além dos conceitos e paradigmas com os quais estávamos acostumados.

L&I - Aproveitando sua experiência como pesquisador e professor universitário, de que forma você procura equilibrar a necessidade com a oferta de conhecimento? Que critérios procura utilizar?
LFFT - Uma das tarefas mais importantes de um professor ou de um pesquisador é a de abrir caminhos para os estudantes. Os caminhos devem possibilitar ao estudante o encontro com o inusitado, com aquilo que viabiliza a expressão de sua singularidade. Ademais, devem ainda despertar o seu desejo, permitir que ele seja nomeado e indicar as ferramentas necessárias para que ele o sustente.
A destreza do professor, ou pesquisador, ou ambos, reside na capacidade de inquietar e deslocar os saberes consolidados. Responder às demandas de estudantes apenas faz com que eles se mantenham estáticos, no lugar onde antes já se encontravam. O professor é sempre aquele que incomoda – um sujeito pelo qual nutrimos uma ambígua relação de admiração e repulsa, amor e ódio, crítica e respeito.
É na tensão da articulação entre saberes universais e posições particulares que se concentra a prática docente ou de pesquisa. Nesse sentido, não existe critério melhor na posição de um professor do que a ambivalência dos sentimentos contraditórios.



Luiz Fernando Fontes-Teixeira é Doutor, Mestre e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e integrante do corpo de formação do Instituto da Psicanálise Lacaniana. Atualmente, cursa a Licenciatura em Educomunicação e participa do Programa de Estímulo ao Ensino de Graduação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O site para contato e mais informações sobre seu trabalho: www.luizfernandofontesteixeira.com.br.

E quem quiser conhecer o sociólogo citado, Zygmunt Bauman, pode ver o vídeo abaixo, da série "Fronteiras do Pensamento".




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