As fontes de informação nos dias atuais multiplicam-se em uma velocidade intensa, conforme aparelhos com acesso à internet são cada dia mais acessíveis. Lemos, escrevemos, compramos, assistimos, conhecemos pessoas, pedimos a pizza e o táxi... Do bate-papo descompromissado com o amigo à criação de canais de vídeos que podem se tornar uma lucrativa fonte de renda para seus idealizadores. Inúmeras são as possibilidades desses recursos indispensáveis na vida que fica mais corrida, tanto para uma criança atarefada precocemente até a pessoa idosa que não perde tempo em aprender o que puder.
Depois de tantos benefícios apresentados, podemos, então, entrar em um dilema do século 21: tanto conhecimento pode nos tornar indivíduos melhores e mais conscientes de seu planeta ou estaríamos mais para criaturas a caminho de ficar saturadas de tanta coisa? Corremos o risco de perder a concentração e não deixarmos mais nosso cérebro em estado de relaxamento?
Para discutir o assunto, pude conversar e contar com a colaboração do filósofo, psicanalista e professor universitário Luiz Fernando Fontes-Teixeira (foto). Acompanhe a seguir.
L&I - Durante muitos momentos da História, o acesso a conhecimentos importantes era
privilégio de grupos, como religiosos, filósofos e membros da elite, o
que vem mudando consideravelmente desde o século 20. O acesso cada vez maior a
informações sobre fatos em qualquer parte do globo em tempo real é
um avanço significativo nesse sentido. Como você avalia isso do ponto de vista
filosófico? Quais os impactos em nossa sociedade?
LFFT - Sua pergunta levanta dois tópicos muito importantes. O
primeiro diz respeito ao direito de acesso à informação, à comunicação e ao
conhecimento.
A democratização dos meios, com a popularização da internet e
o advento das novas mídias, representa um avanço inestimável. Tanto aqueles que
antes não possuíam acesso às fontes, quanto aqueles que as possuíam, mas tinham
dificuldades de divulgar o conteúdo, podem agora desfrutar de uma ampla rede de
compartilhamento, diálogo e mútua colaboração.
Entretanto, não basta apenas disponibilizar o acesso. É
também necessário ensinar a ler as mais diversas mídias e absorver os múltiplos
conteúdos. Informação não é conhecimento, assim como pouca distância não é
proximidade. É imprescindível promover a passagem da recepção da informação para
a construção do conhecimento. Esse é o motivo pelo qual observamos hoje a
emergência de novas áreas do saber, como a Literacia Midiática, a Educação
Midiática ou a Educomunicação, que apresentam propostas de interatividade, leitura
crítica das mídias e produção colaborativa de conhecimento reflexivo.
Por esse motivo, somente após uma profunda reflexão a respeito
da comunicação e seus meios que poderemos começar a mensurar os limites e
alcances desta nova Era. Pessoalmente, acredito que estamos trilhando somente os
primeiros passos para compreendermos os novos fenômenos do mundo digital.
Já o segundo tópico é um pouco mais complicado. Refere-se ao
poder conferido aos que detêm maior conhecimento. Indo direto ao assunto: o que
me parece estar em jogo aqui é a Ética enquanto postura fundamental. E por
Ética não me refiro a um conjunto de normas ou preceitos morais de “certo” e “errado”,
mas à capacidade de assumir a responsabilidade como um princípio superior.
Quem assume a posição de detentor de um determinado saber,
precisa também assumir a responsabilidade por esse saber e por aqueles que não
o possuem. Caso contrário, o resultado é inevitavelmente o monopólio do
conhecimento, geralmente seguido de ocultação e manipulação de informações, bem
como manipulação do próprio povo.
L&I - E no
campo da psicologia, como tanta informação ao mesmo tempo num site de notícia, por
exemplo, é processado pelo cérebro do indivíduo?
LFFT - O pouco que acompanho dos mais recentes estudos no campo da
psicologia parece indicar que, de fato, o acúmulo excessivo de informações
tende a transtornar o indivíduo. Psicólogos e neurocientistas gostam de nomear
esse fenômeno como “sobrecarga de informação” ou “infotoxicação”. As implicações
parecem ser as mais variadas.
Todavia, não podemos esquecer que a veiculação de tais
informações está apenas disponível, isto é, à mão. Nós é que nos colocamos à
disposição desse excesso e somente nós mesmos podemos interromper o fluxo. Cabe
ao sujeito selecionar aquilo que lhe interessa, tomar a decisão e assumir a
responsabilidade pelo conteúdo que consome.
A partir do ponto de vista da minha área de atuação, a
psicanálise, posso me atrever a argumentar que se colocar à disposição de
tantas informações expressa uma posição subjetiva. O desejo é sempre o desejo
do outro. Quando se alcança algo desejado, sintomaticamente se passa a desejar
outra coisa. O excesso de informação apenas responde à demanda e fomenta essa relação
ambígua com o desejo.
L&I - Por
conta disso, a ansiedade, como transtorno psíquico, é efetivamente um problema
de saúde pública hoje ou se tem tornado alvo fácil da indústria farmacêutica?
Estamos realmente nos tornando mais impacientes e preocupados demais em sermos
bem vistos socialmente?
LFFT - A ansiedade é um sintoma que revela a dificuldade de lidar
com as incertezas, com o inesperado, com aquilo que não podemos nem controlar, nem
nomear. Trata-se de um dispositivo de defesa perante o desconhecido, o
imprevisível. A ansiedade sempre se manifestou, com ou sem tecnologia. É um
velho sintoma presente em uma nova realidade, onde as coisas estão apenas
dispostas de maneira distinta. Ainda estamos aprendendo a lidar com essa nova
disposição.
A indústria farmacêutica é outro problema. Ela avança com ferocidade,
dia após dia, ano após ano. Não podemos, contudo, negar que devemos muito aos
esforços empreendidos por essa indústria. Entretanto, assim como a questão da
informação excessiva, os fármacos estão apenas disponíveis. Cabe ao sujeito
optar pelo seu consumo ou não. Nesse ponto, retomamos também a primeira
pergunta, aquela que relaciona o poder com o conhecimento. Os médicos devem ser
responsáveis o suficiente pelo saber que possuem e administrarem os remédios certos,
na medida certa – não permitindo que o lobby de grandes empresas direcione o
tratamento de seus pacientes.
Agora, quanto à impaciência e à preocupação em sermos bem
vistos socialmente, acredito que isso sempre ocorreu, assim como a ansiedade. O
que muda é que tais fenômenos estão mais visíveis – o que pode ser bom, por um
lado, e ruim, pelo outro. É uma questão de meio, não de fim.
L&I - As novas
gerações que estão crescendo com as tecnologias sofrem ou sofrerão prejuízos
que as anteriores não tiveram por conta do acesso ilimitado a fontes de
conhecimento?
LFFT - Não é possível afirmar acuradamente se as novas gerações
serão vítimas de prejuízos decorrentes do acesso “ilimitado” ao conhecimento. Qualquer
um que afirme isso categoricamente cairá no engodo de uma predição vazia e sem
fundamentos.
O que talvez seja possível supor é que a nova geração possui
modos de fazer laço social ligeiramente distintos daqueles que outrora
conhecíamos, o que exige uma nova perspectiva a respeito do sujeito. Ainda
estamos construindo as bases para pensar essa nova perspectiva e talvez
permaneçamos “em construção” por ainda muito tempo.
Seja como for, acredito que muito pouco das nossas
expectativas em relação às novas gerações serão atendidas. Usamos uma lógica
velha para compreender o novo. Uma guinada em nosso olhar se faz urgente se
quisermos ensaiar uma resposta digna para essa pergunta.
L&I - Como
você enxerga a situação de um indivíduo que descobre e vasculha perfis de
tantas pessoas diferentes com o clique de um mouse ou toques de dedos ao
celular? Problemas como autoestima baixa e sensação de solidão tendem a se
agravar?
LFFT - Esse é outro ponto incalculável. Não podemos prever quais tipos
de problemas advém da prática de vasculhar perfis de outras pessoas na
internet. Cada caso é um caso. As redes sociais são apenas um novo e mais hábil
veículo para um sintoma já muito antigo. Aquilo que agrava a sensação de
solidão ou interfere na imagem de si mesmo possui origens que só o próprio
sujeito pode investigar e analisar – geralmente, remontam a questões
inconscientes anteriores ao uso da internet. As mídias sociais podem apenas
deixar esses problemas mais visíveis.
L&I - Para o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman (autor de uma série de livros publicados no
Brasil como Tempos Líquidos e Vida para Consumo), vivemos uma espécie de
período de ilusões. O virtual pode se sobrepor ao real, fazendo com que, por
exemplo, ter uma grande quantidade de amigos numa rede social seja sinal de
pertencimento a um grupo, podendo-se acrescentar ou retirar membros a qualquer
momento. Que riscos você vê nisso?
LFFT - Bauman é uma das mentes mais afiadas, provocativas e ilustres
da sociologia contemporânea. Suas teses dialogam com diversas áreas do
conhecimento e suas pesquisas sempre analisam problemas pertinentes aos
desdobramentos mais urgentes de nosso tempo. Todavia, acredito que ainda estamos
muito longe de pensar com suficiente radicalidade o sentido de termos como
“real” e “virtual”. Supor uma cisão entre ambos me parece ingênuo.
Talvez faça sentido para a minha geração e para as gerações
anteriores pensar assim. Entretanto, os chamados “nativos digitais” não
compreendem o “real” e o “virtual” como estruturas separadas. Ambos fazem parte
de uma mesma realidade entrelaçada, que se implica mutuamente. Novamente,
insisto, não podemos olhar para os novos fenômenos de hoje através das velhas
lentes com as quais enxergávamos o mundo de ontem. Bauman abriu muitos
caminhos. Chegou a hora de refletir seriamente sobre suas sugestões e
apresentar algo novo, para além dos conceitos e paradigmas com os quais
estávamos acostumados.
L&I - Aproveitando sua experiência como pesquisador e professor universitário, de que
forma você procura equilibrar a necessidade com a oferta de conhecimento? Que
critérios procura utilizar?
LFFT - Uma das tarefas mais importantes de um professor ou de um
pesquisador é a de abrir caminhos para os estudantes. Os caminhos devem
possibilitar ao estudante o encontro com o inusitado, com aquilo que viabiliza a
expressão de sua singularidade. Ademais, devem ainda despertar o seu desejo, permitir
que ele seja nomeado e indicar as ferramentas necessárias para que ele o
sustente.
A destreza do professor, ou pesquisador, ou ambos, reside na
capacidade de inquietar e deslocar os saberes consolidados. Responder às
demandas de estudantes apenas faz com que eles se mantenham estáticos, no lugar
onde antes já se encontravam. O professor é sempre aquele que incomoda – um
sujeito pelo qual nutrimos uma ambígua relação de admiração e repulsa, amor e
ódio, crítica e respeito.
É na tensão da articulação entre saberes universais e
posições particulares que se concentra a prática docente ou de pesquisa. Nesse
sentido, não existe critério melhor na posição de um professor do que a
ambivalência dos sentimentos contraditórios.
Luiz Fernando
Fontes-Teixeira é Doutor, Mestre e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e integrante do corpo de formação do
Instituto da Psicanálise Lacaniana. Atualmente, cursa a Licenciatura em Educomunicação e participa do Programa de Estímulo ao Ensino de Graduação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O site para contato e mais informações sobre seu trabalho: www.luizfernandofontesteixeira.com.br.
E quem quiser conhecer o sociólogo citado, Zygmunt Bauman, pode ver o vídeo abaixo, da série "Fronteiras do Pensamento".
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